Cinema

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Enter the Void é o que o título português anuncia: uma "viagem alucinante" por paisagens que raramente o cinema convencional explora

Estreiam

Daqui ninguém sai vivo

Depois de Irreversível, Gaspar Noé ilustra uma viagem sem regresso à vida depois da morte num filme que força as fronteiras da imagem mas se perde no labirinto do seu delírio.

Jorge Mourinha

Viagem Alucinante

Enter the Void

De Gaspar Noé

Com Nathaniel Brown, Paz de la Huerta, Cyril Roy

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Pegue na trip sideral do 2001 de Kubrick; junte-lhe as alucinações fractais-digitais do Blueberry de Jan Kounen; acrescente uma pitada de misticismo Malickiano misturada com pozinhos de delírio Jodorowsky, essência de Ken Russell, David Lynch e telediscos néon ao gosto do freguês; tempere com extracto de Michel Gondry e uma colher da câmara-vómito de Irreversível. Misture tudo com a varinha mágica e atire para o écrã como quem lança cocktails Molotov e recoste-se na cadeira a ver as reacções do público. Goste-se ou não (e dificilmente se encontrará um meio termo), por onde quer que se olhe Enter the Void é uma singularidade, um objecto diferente que força as fronteiras do cinema "convencional" e a tolerância do espectador quase até à rejeição. Ou não fosse o seu autor, o franco-argentino Gaspar Noé, o mesmo de Irreversível (2002). Naquele filme, Noé mergulhava a sua meditação intensamente humana sobre a tragédia num confronto quase escatológico com a violência, que fazia o espectador olhar de frente para as coisas das quais prefere desviar os olhos.

Agora, na sua terceira longa-metragem, Noé escolhe falar da vida e da morte pelo meio de uma "viagem alucinante" que acompanha as deambulações do espírito de um "dealer" acabado de morrer por uma Tóquio alucinogénica, traçando em flashbacks o percurso que aqui o levou e acompanhando o modo como a vida continua depois da sua morte. A "viagem alucinante" - e o título português pisca o olho a um dos filmes-inspiração de Enter the Void, Viagens Alucinantes (1980) de Ken Russell - é, acima de tudo, um filme puramente sensorial, visceral, que passa o tempo a forçar as fronteiras do que é possível em termos visuais com uma conjugação estroboscópica de câmara à mão, fotografia saturada, manipulação digital e efeito visual falsamente naïf. E só a ousadia de tentar dar corpo visual a um mistério insolúvel - e de o fazer em modo de transe libertário-alucinado alimentado a drogas puras - já explica que Noé não tem problemas em arriscar tudo sem ter medo de se estampar ao comprido. Há, claro, momentos em que se estampa; ao ultrapassar as duas horas de duração, a "trip" torna-se excessiva, cai pontualmente na indigestão do efeito gratuito, como se Noé se houvesse perdido no labirinto que ele próprio criou e se tivesse esquecido do filme que era suposto haver por baixo. Mas ninguém nunca recomendará Enter the Void por ser o grande filme que evidentemente não é; antes por ser um objecto singular, coisa rara nunca vista, "passagem do terror" de feira popular que se atravessa para se dizer que se passou por ela e que não deixa ninguém incólume. Enter the Void é aquilo que o título português anuncia: uma "viagem alucinante" por paisagens que raramente o cinema convencional explora. Quem quiser que se arrisque por sua conta e risco; e não diga que não foi avisado.

O homem de Marte

Não é só John Carter que vem de Marte: também este belo filme de aventuras que parece pertencer a uma outra era do cinema popular

Jorge Mourinha

John Carter

John Carter

De Andrew Stanton,

Com Taylor Kitsch, Lynn Collins, Samantha Morton

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Fez agora 30 anos, Steven Spielberg reinventava o cinema de aventuras de série B para uma nova geração com Os Salteadores da Arca Perdida (1981), tal como George Lucas o havia feito em 1977 com a space opera e os serials na Guerra das Estrelas. John Carter é animado exactamente pela mesma vontade cinéfila de recuperar a inocência entusiasmada de um tempo em que o cinema popular era de uma ingenuidade desarmantemente contagiante, em que os prazeres simples dos "polícias e ladrões" e dos "índios e cowboys" bastavam para transportar o espectador.

Assinalavelmente fiel à personagem imaginada por Edgar Rice Burroughs, o criador de Tarzan - um oficial de cavalaria que, após a Guerra Civil americana, dá por si transportado para um Marte de pacotilha onde cai no meio de uma quase guerra civil - , John Carter é uma espécie de mash-up de géneros. Começa por piscar o olho ao western antes de se instalar numa paisagem mista de ficção científica fantasista retro-primitiva e aventura exótica em terras distantes. E por trás disto está Andrew Stanton, o animador da Pixar responsável por À Procura de Nemo (2003) e Wall-E (2008), trazendo ao filme a mesma solidez de construção a que o estúdio de animação nos habituou e a mesma vontade de desafiar e convencer o espectador a deixar-se seduzir por um filme "à moda antiga" que se coloca deliberadamente ao lado dos padrões contemporâneos do blockbuster.

Também por isso, John Carter é um filme que pertence a um outro tempo, que não estaria contaminado pela redução do discurso sobre o cinema a um mero alinhamento de números de bilheteira e fórmulas de marketing. E assim se corre o risco de passar ao lado do melhor filme de aventuras que Hollywood fez desde o Star Trek de J. J. Abrams (2009); uma série B que não está isenta de falhas mas que as compensa pela sua rendição ao prazer puro do grande cinema popular e que se está a borrifar na necessidade de agradar a gregos e a troianos. E que, sobretudo, nunca quer ser mais do que aquilo que é: um belo filme de aventuras. O que, no tempo em que vivemos, parece vir de Marte. Isso chega-nos. E a si?

Buraco negro

O Outro Mundo

L"Autre Monde

De Gilles Marchand

Com Grégoire Leprince-Ringuet, Louise Bourgoin and Melvil Poupaud

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O nome de Gilles Marchand não dirá muito a muita gente, mas é alguém com um certo currículo como argumentista: da pena dele saíram títulos estimáveis como Harry, um Amigo ao Seu Dispor (de Dominik Moll, co-argumentista deste O Outro Mundo) ou os Sinais Vermelhos de Cédric Kahn, e pelo menos uma obra notável, os Recursos Humanos de Laurent Cantet. O Outro Mundo não repete nenhum destes filmes, falta-lhe a verve e o sentido lúdico dos dois primeiros, e está a milhas da complexidade do filme de Cantet.

É, digamos, uma tentativa de renovação de certos elementos típicos do filme negro para o tempo da Internet e das identidades virtuais. Há um rapaz que se deixa encantar por uma enigmática, e aparentemente pouco recomendável, mulher loura, e a persegue "neste mundo" e no "outro" - no "outro mundo", que aqui é um jogo online (o Black Hole) ao estilo do Second Life e quejandos. Imaginamos que Marchand e Moll tenham estado com o Blue Velvet de Lynch na cabeça, porque a história do rapaz atrás da rapariga loura ecoa fortemente a relação entre Kyle MacLachlan e Isabella Rossellini nesse filme, com canções e tudo (e um clube "virtual" que, já agora, podia bem ser inspirado no "Silêncio" de outro filme de Lynch). Por outro lado, o grafismo - basicamente, são sequências inteiras de animação - das cenas em ambiente virtual trazem algum Tim Burton à memória. Uma e outra referência fazem sentido, porque Lynch e Burton são cineastas que trabalham o lado monstruoso da fantasia, ou o pesadelo que é a fantasia realizada, e essa é a ideia-chave de O Outro Mundo. Mas se ao filme não falta uma certa atmosfera (o negrume virtual jogado contra o sol da praia e o azul do mar), também não se passa das meias tintas, muito por culpa de personagens que parecem mal desenvolvidas de tão baças que são sempre (mesmo Melvil Poupaud, que está aqui um bocadinho como Dennis Hopper estava no Blue Velvet). E portanto, mais pela mescla de elementos (que é interessante) do que propriamente pelo trabalho que faz com eles (que é decepcionante), arrumamos O Outro Mundo na gaveta das curiosidades de que, francamente, não prevemos vir a recordar-nos muitas vezes. Luís Miguel Oliveira

Continuam

Em Câmara Lenta

de Fernando Lopes

Com Rui Morrison

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Um filme mais, e Fernando Lopes filmar-se-á sozinho. Isto é: estaremos nós sozinhos face ao seu "alter ego", que pode bem voltar a ser o actor Rui Morrison. Um filme mais porque... há, em Câmara Lenta, filme de um lento hara-kiri e também um filme de câmara em que um homem (Morrison) já não tem mais nada à volta a não ser os seus fantasmas (as suas mulheres), uma promessa de desprendimento, de solidão. De deixar para trás os diálogos de convenção e os compromissos da narrativa e caminhar, conscientemente, para o que é essencial. Nobreza de samurai a desta personagem. E a da solidão que está in progress neste cineasta. Por isso, um filme mais... Vasco Câmara

Florbela

De Vicente Alves do Ó

Com Dalila Carmo, Albano Jerónimo, Ivo Canelas

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Depois de Quinze Pontos na Alma (2011), Vicente Alves do Ó reincide com Florbela no seu cinema fetichista do grande gesto romântico, da evocação grandiosa do melodrama clássico. Desta vez, aplica-o à figura da poetisa Florbela Espanca, evocando de modo livre o seu casamento com o médico Mário Lage e a sua relação de comunhão com o irmão Apeles. E louve-se o desejo de resgatar esse melodrama do amor impossível das garras televisivas, ao mesmo tempo que se lamente que fique tão aquém do modelo que quer seguir, reduzindo a personagem da poetisa a mero arquétipo telenovelesco da "artista infeliz" cujas vivências dolorosas alimentam directamente a sua arte. Florbela perde-se no mais puro decorativismo visual demonstrado às três pancadas, numa confusão diabólica entre forma e substância que desbarata uma boa ideia numa série de gestos inconsequentes e formalistas, que confirma que Vicente Alves do Ó se deixa levar para "fora de pé" pelo seu desejo sôfrego de cinema. J.M.

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