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A tensão entre a figuração de grandes grupos de pessoas e a abstracção das folhas monocromáticas domina a exposição MIGUEL MANSO

Coisas da pintura

As preocupações com que Bruno Pacheco "se faz" à pintura resultam em trabalhos de uma densidade pouco comum.

Nuno Crespo

Mar e Campo em três momentos

De Bruno Pacheco.

Cascais. Casa das Histórias - Paula Rego. Av. República, 300. Tel.: 214826970. Até 8/04. 2ª a Dom. das 10h às 18h.

Pintura.

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Mar e Campo em três momentos é um titulo simultaneamente rigoroso e enganador: por um lado, descreve rigorosamente os temas da exposição, por outro é uma metáfora para falar acerca das coisas da pintura. É importante clarificar que Bruno Pacheco é um pintor: mesmo quando faz vídeos ou mostra objectos ou instalações, as suas preocupações são sempre com as coisas da pintura. E estas dizem respeito à forma, ao corpo, à figura e, sobretudo, à percepção. Por isso, o mar é não só o tema tradicional da pintura, mas serve para falar do horizonte, da perspectiva, da profundidade e da luz; por sua vez, campo aponta para a natureza como tema de eleição da pintura, mas ao mesmo tempo serve como metáfora para campo do olhar, da percepção, da acção pictórica.

Este uso metafórico não é um brincadeira retórica ou um jogo de linguagem. Representa o esforço feito pelo pintor para mergulhar em profundidade na sua disciplina. Ao afirmar que só pinta aquilo que não sabe (ver texto na pág. 20 e segs.), o artista faz ver a sua obra não só como resposta à inquietação (que também é uma ambição) de saber mais, mas também como gesto exploratório de um campo sensível e de uma linguagem: Bruno Pacheco não está interessado em fundar uma nova região (a que corresponderia uma nova forma) para o seu trabalho, mas em explorar as possibilidades e os limites da pintura.

A tensão entre a figuração e a abstracção caracteriza todos os trabalhos - desde as pinturas figurativas em grande formato em que aparecem grupos de pessoas em actividades no campo ou vistas do mar, até às folhas monocromáticas pousadas no chão sobre uma grade e aos desenhos de pequeno formato de uma cabeça de mulher. É uma forma de falar da inutilidade daquela distinção e de fazer da pintura um dispositivo de captação de energia e de expansão da sensibilidade.

As preocupações com que Bruno Pacheco "se faz" à pintura resultam em trabalhos de um densidade e inteligência pouco comuns, que se deixam abordar a partir de uma multiplicidade de pontos de vista: a questão da figura, da superfície, da geometria da visualidade, da organização da composição ou da beleza. Assim se estabelece uma afinidade com a história da pintura, não no sentido de identificar zonas, citações ou apropriações de movimentos historicamente definidos, mas como forma de tornar consciente que o gesto do pintor prolonga uma forma histórica de atenção e de trabalho com o visível.

Neste contexto, é muito interessante o modo como esta exposição, nos seus três momentos, pode ser vista como um dispositivo de contraste: entre a nitidez de certas figuras e o seu desaparecimento numa mancha indistinta, entre o que está dentro das telas e o que está fora, entre a verticalidade e a horizontalidade do campo visual, entre a geometrização da visão e a mancha sem hierarquia, entre a grande escala e o pequeno formato, entre a narrativa (os grupos de pessoas pintadas estão sempre envolvidas em algum tipo de actividade, o que parece sugerir uma história) e a pura experiência visual (as folhas monocromáticas e as imensas manchas que constituem territórios pictóricos) e, finalmente, entre Bruno Pacheco e Paula Rego. Este último aspecto não é uma provocação, nem uma filiação do artista mais jovem na artista consagrada. A fertilidade do encontro está nas diferenças entre dois modos de lidar com a linguagem da pintura e na evidência de que, em ambos os casos, ela surge como meio eficaz de fazer coisas para serem sentidas. Ou seja, como potência sensual.

O modernismo por cumprir

A dupla A mata B no Centro de Arte Moderna.

Luísa Soares de Oliveira

A Kills B

De A Mata B.

Lisboa. Centro de Arte Moderna - José de Azeredo Perdigão (Sala Polivalente e Sala de Exposições Temporárias). R. Dr. Nicolau de Bettencourt. Tel.: 217823474. Até 6/05. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Instalação.

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Nas duas tardes que se seguiram à inaguração da exposição A Kills B, a Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna recebeu uma "ópera experimental", ou "acção imagética" (segundo as palavras dos artistas). Ifigénia e Isaac, com dramaturgia de José Miranda Justo e música de João Ferro Martins e Nuno da Rocha, encenava um longo lamento dos dois filhos mortos (ou quase mortos) pelos respectivos pais em textos fundadores da cultura ocidental (do lado grego, no caso de Ifigénia, ou judaico, no de Isaac). A dupla de artistas A Mata B reflectia ali sobre a inevitabilidade do sacrifício, da aniquilação de outrem, para que o destino se cumpra. O que está escrito, escrito está (no caso grego), ou apenas pode ser apagado por intervenção divina (no caso bíblico); mas o que importa para Hugo Canoilas e João Ferro Martins é a acção destrutiva fundadora, que tudo precede - inclusive em arte.

O cenário da performance era apenas composto por duas enormes cabeças em gesso deitadas no chão, vestígios em ruínas de um passado eternamente convocado e presente. As cabeças, em torno das quais os espectros dos filhos de Agamémnon e de Abraão evoluíam, impunham-se pela sua presença, e sobretudo pela ligação que estabeleciam com o que se passava ao lado, na sala de exposições temporárias. Aqui, o espaço habitual inteiramente transformado obriga o público a passar por uma série de compartimentos que mais tarde se revelam ser palcos. O percurso termina numa sala de espectáculos, com as cadeiras reservadas ao público dispostas em filas paralelas, onde cada qual se pode sentar e observar os restantes visitantes da exposição enquanto estes circulam pelos palcos iluminados. A peça, muito bem pensada e construída, opera uma inversão do sistema habitual de usufruto da arte: o público toma o lugar da obra, a obra no sentido convencional deixa de existir, e conceptualmente materializa-se aquilo que o nome da dupla (e da obra) já enunciava, a morte dos três elementos que constituem hoje a obra de arte (o artista, o projecto e o público).

Na realidade, Ferro Martins e Canoilas dão continuidade a um programa que começou a constituir-se nos inícios do século XIX e que até hoje nunca foi cumprido: a tentativa de realizar uma "obra de arte total", ou Gesamtkunstwerk, de que a ópera, sobretudo a de Wagner, um dos teóricos do conceito, foi um dos exemplos maiores. Ao aliar a música, o canto, a dramatização por actores, a construção de natureza arquitectónica (mesmo que ela seja rudimentar, como sucede na Sala de Exposições Temporárias), a pintura (todos os palcos ostentam o cromatismo forte e saturado que é uma das marcas do trabalho de Hugo Canoilas) e a escultura, nas grandes cabeças que servem de cenário à peça, A Mata B consegue efectivamente sintetizar todas as disciplinas artísticas num único trabalho. Habermas, que mantinha que a modernidade ainda estava por cumprir por volta de 1980, é um nome que associamos imediatamente à reflexão sobre este tipo de projectos, que aliás foi um dos pontos fortes de todas as vanguardas e menos vanguardas enquanto elas existiram: do dadaísmo ao surrealismo, de Rauschenberg a Robert Morris, de Picasso a Cocteau, toda a modernidade teve como ambição a realização de uma obra de arte total, e a inclusão do público, nem que fosse pela provocação e o insulto, na sua concepção.

Hoje, a obra de arte total talvez esteja nos festivais de verão. Esta de que falamos, por enquanto, ainda mora no museu, e abrange um público restrito, como o é sempre o público que frequenta os museus. Mas essa é uma outra discussão, a que decerto os artistas estarão atentos.

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