As vinhas do Douro e a insensatez pública

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PAULO RICCA

Há uma revolução em curso na paisagem do Douro, mas, de momento, o que existe de mais visível é uma "guerra" miudinha opondo muitos viticultores à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN). Pela primeira vez, a plantação de vinhas em terrenos da Reserva Ecológica Nacional (que abrange quase toda a região) obriga a um parecer prévio da CCDRN e muitos investimentos estão a ser chumbados, apesar de já estarem concluídos e de terem sido aprovados pelo Ministério da Agricultura.

Com a distinção do Douro vinhateiro como Património Mundial, foram definidas regras de intervenção na paisagem classificada muito mais apertadas, como a proibição de abrir patamares de dois bardos nos terrenos mais inclinados e de plantar vinhas em cumeadas, linhas de água e matos e bosques de interesse ambiental. Em 2008, os ministérios do Ambiente e da Agricultura decidiram alargar estas exigências a toda a região demarcada.

No último trimestre de 2009, centenas de viticultores candidataram-se ao programa VITIS, de reestruturação e plantação de novas vinhas (com uma grande comparticipação comunitária), com base numa portaria do Ministério da Agricultura que não fazia qualquer referência à circunstância de os investimentos necessitarem de um parecer vinculativo da CCRDN. A única exigência a que estavam sujeitos era à emissão de um parecer de alteração de perfil por parte do Ministério da Agricultura.

Por lei, o Ministério de Agricultura dispõe de dois meses para aprovar ou chumbar as candidaturas ao VITIS, mas nunca respeita estes prazos. De modo que, seguindo uma prática antiga, a esmagadora maioria dos viticultores foi realizando os investimentos por conta própria, uma vez que estão obrigados a terem a plantação concluída até ao final do próximo mês de Junho, sob pena de perderem todos os apoios ou serem obrigados a entregar uma garantia bancária. Acontece que nas últimas semanas muitos deles começaram a receber em casa notificações da CCDRN informando-os do chumbo dos seus projectos, por não cumprirem com as regras ambientais estabelecidas. Nuns casos por terem aberto patamares de dois bardos quando a inclinação do terreno impunha que fosse apenas de um bardo, para, reduzindo a altura dos taludes, se diminuir os riscos de erosão e facilitar uma prática agrícola mais amiga do ambiente; noutros por terem plantado a vinha em matos que integravam determinado mosaico vegetal.

Da perplexidade à contestação foi um passo. Desde logo porque nenhum viticultor foi avisado pelo Ministério de Agricultura que, pela primeira vez, as candidaturas ao VITIS iriam estar sujeitas a parecer da CCDRN; depois, porque a quase totalidade dos projectos tinha obtido parecer positivo por parte do próprio Ministério da Agricultura.

O desespero tomou conta de muitos viticultores, a braços com dívidas avultadas decorrentes dos investimentos realizados, e já há processos a correr em tribunal, até porque um chumbo da CCDRN não inviabiliza apenas o acesso aos fundos comunitária, também implica o pagamento de uma multa. A Real Companhia Velha, por exemplo, viu embargado um grande investimento que estava a realizar na Quinta dos Aciprestes e foi obrigada à reposição das condições originais do terreno e ao pagamento de uma multa de 200 mil euros. A empresa recorreu judicialmente da decisão.

Em boa verdade, até agora, valia tudo. Com o lançamento do PDRITM (Programa de Desenvolvimento Regional Integrado de Trás-os-Montes) no início da década de oitenta do século passado e a plantação de milhares de hectares de novas vinhas, o Douro passou por um processo de modernização sem precedentes. A mecanização baixou os custos de produção e a aposta em castas revelou-se, genericamente, acertada, como o comprova o actual nível dos vinhos DOC do Douro. Mas, na forma de plantar as vinhas, em patamares de dois bardos e ao alto, o PDRITM e alguns dos programas de apoio que se seguiram foram um desastre para a região. Plantaram-se vinhas nos sítios mais inimagináveis, desafiando a natureza e as leis da Física. O resultado fica à vista todos os invernos: grande erosão de terras e derrocadas maciças de patamares e até de estradas públicas.

É por isso que só se pode saudar a intervenção da CCDRN, embora seja exigível uma maior coordenação de critérios entre os vários departamentos do Estado. A paisagem do Douro está a ficar perigosamente monocromática, dominada cada vez mais pela vinha, com perda acentuada de diversidade biológica e cultural. O velho mosaico mediterrânico está a perder-se. Os impactos ambientais, decorrentes da erosão de terras e do uso de herbicidas para manter limpos os patamares das vinhas, são inimagináveis.

Ao actuar sem contemplações, na mesma linha dos primeiros tempos da ASAE, a CCDRN começou a ser falada e a sua jurisdição tida em conta, introduzindo um elemento dissuasor importante para que, no futuro, não se voltem a cometer os mesmos erros. Mesmo com alguns excessos e decisões discutíveis, a mensagem está a começar a passar e nenhum viticultor vai voltar a plantar uma vinha sem se informar previamente se o pode fazer e em que condições.

Só não se compreende que se queira preservar matos rasteiros e se continue a permitir arrancar olivais e amendoais para se plantar vinhas. E também não é aceitável que se actue a meio do processo, já com os investimentos feitos. Os agricultores que plantaram vinhas este ano ao abrigo do VITIS deviam ter sido avisados e preparados para as novas exigências. Muitos deles não teriam plantado e, se o fizessem, não teriam cometido os erros que cometeram. Faltou um ano zero.

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