Vera, 23 anos, ao comando de um rancho de homens

A força que se exige a quem tira cortiça faz deste um trabalho masculino — e a sua técnica, o mais bem pago na agricultura. Vera Santos lançou-se agora na liderança de um rancho. É caso raro.

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Às seis da manhã, mal os primeiros sinais de sol iluminam os sobreiros, uma dezena de homens segue cada um para a sua árvore. Espalham-se pelo montado sabendo de cor e salteado o que precisam de fazer, sem falar, sem olhar para trás, sem olhar para os lados.

A humidade entra pelo corpo neste Verão que ainda não chegou a Alcácer do Sal. E os machados começam a cravar-se nos cascos, com mestria para não ferir as árvores. Um golpe em falso e a cortiça deixará de ser a mesma. Um golpe em falso e o machado acerta não no tronco mas na carne.

Àquela luz da madrugada, o eco do movimento sincopado dos machados, alguns ao mesmo tempo, outros alternadamente, faz dos tiradores os músicos de uma orquestra. O som hipnotiza. Olhando para a paisagem é isso mesmo que parecem estes homens de T-shirt vermelha e boné verde-alface: intérpretes de uma pauta que se escreve com músculos e muita força.

Se uma machadada exige precisão, centenas de machadadas exigem endurance, força, paciência e persistência, um treino que se ganha a cada ano que se passa no campo. Ao segundo dia de manhã, o corpo costuma doer. Estima-se que cada homem, por dia, tire umas 60 arrobas, equivalente a 900 quilos.

Neste rancho, a jorna dura das 6h às 14h, há uma pausa aí de meia hora para uma merenda, lá pelas 10h. Com o Sol alto, o calor torna cada gesto mais custoso. Ao lado dos homens está um termos com água, carregado a cada passada. Acabam uma árvore, tiram as pranchas de cortiça, passam para a seguinte. E assim sucessivamente nesta coreografia repetitiva. Às vezes, aparecem formigas, que não fazem mal mas picam e incomodam. Pode haver moscas, abelhas, melgas. E carraças.

— Este terreno é fácil. Os sobreiros são novos, as árvores são baixas, a cortiça sai fácil — diz Samuel Santos, 28 anos, o manajeiro deste rancho de 13 homens que vem à Herdade da Barrosinha trabalhar.

De olhos claros, Samuel tem uma estatura média. Desde os 17 que anda na tiragem. Durante o resto do ano, trabalha em outras actividades agrícolas. Fala enquanto maneja o machado, porém não se distrai. Está de olho nos outros trabalhadores. Entre eles, a presença das jornalistas gera piadas: que estão a filmar o mais feio, brincam; que as conversas sobre as mulheres deles (que as têm mesmo!) estão a ser gravadas por nós.

Como aqui a cortiça é certificada, os tiradores usam uniforme. É uma exigência de segurança para que os homens se vejam uns aos outros. Porque as árvores são pequenas, hoje, início de Junho, eles não trabalham em parelha.

— Aos colegas, chamamos “camaradas” — explica Samuel.

Quando a árvore é alta, um dos camaradas trepa para cima, fica a cortar a cortiça a partir do tronco, enquanto o outro se mantém pelo solo. No entretanto, vão conversando. Conversas de homens, dizem-nos. Com palavrões à mistura.

No ano passado, Flávio Bravo, tirador, conheceu umas holandesas que tentaram tirar cortiça. Mas desistiram.

— A pessoa tem de ter força, tem de ter noção do jeito da machada, tem de ter uma resistência superior.

Trabalho exclusivamente de homem, portanto?

— É mais uma questão de machismo. É preciso elas quererem, terem vontade de fazer. Ganha-se bem e perde-se muito peso — diz, a rir-se.

Na agricultura, a tiragem de cortiça é o trabalho mais bem pago de todos. Anda por volta dos 95-100 euros por dia, até mais (aqui na Barrosinha, os trabalhadores estão a receber 100 euros, dizem-nos). Paga-se bem porque, ao contrário da apanha da azeitona, por exemplo, exige especialização técnica. Ainda não há máquinas que substituam o machado, embora se estejam a desenvolver protótipos cujo objectivo é, também, depender menos da especialização.

Pelo menos assim espera Pedro Silveira, da direcção da União da Floresta Mediterrânica (UNAC), que fala de uma máquina capaz de ser usada só com uma mão, com boa autonomia em termos de bateria e com sensores para não ferir as árvores. “Os homens vão ter de continuar a accionar as máquinas, o que vai acontecer é que vai deixar de ser um trabalho especializado”, diz.

Mas até à implementação no mercado vai levar alguns anos. Enquanto isso, a mão e o machado continuam a ser a forma única de tirar cortiça das árvores. Nem todos o conseguem fazer. A arte é ensinada no campo, transmite-se entre gerações, mas há cada vez menos disponibilidade para aprender e cada vez menos disponibilidade também para ensinar, queixam-se os tiradores.

Perde-se tempo a explicar ao aprendiz que o machado é para a esquerda ou para a direita, a ensiná-lo a tomar o pulso ao balanço com que deve entrar no casco. Perder tempo não interessa a ninguém porque equivale a perder dinheiro. Resultado, há uma nova geração de tiradores de cortiça que não se está a formar. Paga-se bem, mas exige muito esforço físico, poucos estão para isso. Que interesse tem um pai que trabalhou para o filho estudar na universidade pô-lo a aprender a tirar cortiça na altura em que deveria estar a estudar para os exames? A época da tiragem começa quando começa o calor, termina em meados de Agosto, e ninguém começa a aprender a meio.

Eis uma tarefa arriscada, a extracção da cortiça: os homens podem cortar-se com o machado ou cair das árvores. O corte pode ser um arranhão ou atingir uma perna, ou um dedo, ou um braço. Ao dono do sobreiro, e ao empreiteiro que explora a tiragem da cortiça, também não interessa mesmo nada que o machado danifique o entrecasco, que ele fique ferido. Se a incisão for pequena, pode cicatrizar. Se for profunda, a cortiça vai ser de pior qualidade e dificultar a extracção futura.

— Isto é o limpa-lágrimas do povo. É quando se ganha mais qualquer coisa. O resto do ano é trabalhar para não morrer, diz um dos tiradores.

Por lei, está proibido o corte do sobreiro, a segunda espécie florestal portuguesa — só se pode fazê-lo em casos excepcionais. Portugal é o principal produtor do mundo e é também o principal país exportador de cortiça: tem uma cota de 65% do mercado mundial da exportação — para se ter uma ideia, a seguir vem a Espanha, com 16%. Ao mesmo tempo, 34% da área de montado de sobro do mundo está cá (e mais de 80% fica no Alentejo).

Os últimos números dizem que quase 50% da produção mundial tem origem em Portugal. Ao todo, representa 2% do total das exportações (dados da Associação Portuguesa de Cortiça, APCOR, INE, para 2012).

Joaquim Lima, director-geral da APCOR, lembra que o país é ainda líder na transformação — e, portanto, um dos principais importadores. Sublinha, porém, que não há uma métrica que permita saber quanta cortiça é produzida por ano. Os dados mostram que o sector é rentável? Depende da perspectiva. Mas fez uma mulher, Vera Lúcia Santos, 23 anos, entrar num negócio de homens.

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As mulheres podem isso e mais

Há uma tradição no rancho de Vera Lúcia, que está a trabalhar numa herdade a uns quilómetros da Barrosinha (o administrador preferiu que não referíssemos o nome). Quem ficar sentado no sobreiro a fumar, por exemplo, paga uma grade de cervejas ao grupo. Também há uma “multa” para quem não tiver cuidado com o local ao ar livre onde vai à casa de banho.

Quando decidiu lançar-se para o negócio da cortiça e assumir uma função quase exclusivamente exercida por homens, Vera Lúcia Santos desafiou o pai. Foi ele quem a levou para os campos pela primeira vez tinha ela uns cinco anos. Foi ele, com 40 anos de tiragem, quem a introduziu a um mundo dominado por machos (tirando as ajuntadeiras — que, como o nome indica, juntam as pranchas de cortiça que os homens deixam cair quando as cortam — não é costume ver mulheres no negócio da tiragem). Mas, quando soube que Vera ia lançar-se sozinha no negócio, o pai disse-lhe o mesmo que lhe dissera uns tempos antes, ao saber que a filha queria aprender a trabalhar com a motosserra:

— Isso é coisa de homens, não consegues.

Nos últimos quatro anos, Vera já tinha, de alguma forma, liderado praticamente o mesmo rancho com que está agora. Era ela que ia para o terreno, como hoje. A diferença é que antes tinha o pai por trás. E não era sua concorrente. Vera acha que o pai desaprova a sua iniciativa por causa disso: por lhe fazer concorrência.

— Não foi ele que me ensinou a agarrar na motosserra, fui eu que agarrei numa motosserra e aprendi. Já vem daí o eu dizer: “Não, as mulheres podem fazer isso e muito mais.”

Nas vésperas do primeiro dia de trabalho, Vera nem dormiu bem. Acordou a meio da noite a pensar que estava no campo de sobreiros. Na segunda noite, imaginou-se a atirar uma prancha de cortiça para o tractor e acordou sobressaltada. Levantou-se pelas 3h15. Vive perto do Montijo e entre encontrar-se com mais alguns trabalhadores que vivem na zona e chegar a Alcácer demora quase duas horas. São 11h e o almoço, que hoje começou mais tarde, está a acabar.

— Querem café?, oferece.

Sentados em bancos de piquenique à sombra de um sobreiro, os trabalhadores estendem os copos. À sua direita, não está Carlos António, mas Carlos António é o braço-direito de Vera Lúcia no terreno. É o tirador com experiência, o homem que sabe para onde mandar os outros cortar, o homem que atira o machado ao sobreiro há 23 anos e diz:

— Para fazer o que estou a fazer, são precisos muitos anos de técnica. Se nunca pegou num machado, não consegue fazer o corte de alto a baixo para separar a cortiça. Para já, porque não consegue acertar as machadadas e depois porque não consegue ter a precisão. Pode cortar um bocadinho, mas vai a meter a machada e ela não sai porque [a cortiça] não está totalmente cortada, diz, enquanto dá um corte, de costas, e faz uma linha à roda do sobreiro.

Quando ensinam, começam pelo balanço da tirada do machado ao sobreiro:

— Tem de se atirar um balanço com o machado tipo morto, não pode ser muito pressionado. O balanço é uma coisa que se vai controlando. O tirador que tem experiência, quando atira a primeira machadada, não sabe qual a grossura da cortiça, mas depois na segunda já sabe, e aí controla. É algo que vai adquirindo, que muda de sobreiro para sobreiro e mesmo no próprio sobreiro. Aparecem sobreiros em que realmente é duro. Às vezes, aparece cortiça já com 15, 18 anos, até mais. Porque ficou lá por algum motivo, e depois essas cortiças estão muito rijas e chegam a ter grossuras em que se enterra o machado todo. Aí é preciso muito esforço, muito.

Este sobreiro para o qual olhamos agora só daqui a nove anos é que dá mais cortiça. Susana, a ajuntadeira, vem com o balde de tinta gravar o número 4, de 2014, para fazer saber aos próximos que só em 2023 é que se deve tirar de novo.

Nove anos é o tempo necessário para a cortiça criar a espessura que permite brocar e fazer as rolhas; quando é pouco espessa, alguns produtores optam por deixá-la na árvore; e se ficar tempo de mais perde características adequadas para fazer rolhas, o que garante a viabilidade económica da cortiça, explica Nuno Calado, da UNAC (a cortiça é usada na construção civil, no design, mas são as rolhas o alicerce do sector: representam 70% do seu valor económico).

A vida no corte faz-se em parelhas, como já tínhamos dito. Mas Carlos está sem camarada. Tudo se torna mais difícil. Uma abelha acabou de o morder, mas é como se nada fosse. Continua a falar connosco e à espera que o ninho de abelhas se desfaça para poder avançar com o machado — ou machada, como alguns dizem.

— Se há uma falta, quem fica sozinho sou eu.

Quando não tira cortiça, Carlos António apanha pinha. Quando não apanha pinha, Carlos António trabalha na construção civil. Voz tranquila, o mestre diz que tiradoras mulheres não conhece. Nem ele, nem nenhum dos homens no terreno com quem falámos. O que há de masculino nesta profissão?

— Mais o músculo, vá. Mais o músculo. Isto tem muita técnica. Quem possa pensar que é fácil, não. Na parte de masculino, é mais o poder do homem para cortar e arrancar certas e determinadas pranchas de cortiça.

Se não tivesse um problema no pulso, Vera Santos queria extrair cortiça dos sobreiros. Tudo a atrai: a mão certa que é preciso ter, a força, a precisão, o cuidado. Gostava de aprender exactamente como se faz para poder mandar melhor. Não há nada como uma patroa que domina a técnica para ser respeitada, ainda para mais neste meio. Seria, mais uma vez, caso raro.

— Eu sou uma faz-tudo, menos tirar cortiça. Neste momento, vou ajudá-los a eles, que estão atrasados. Vou tapando as feridas com este produto [cicatrizante plástico]. Tem feridas porque tem cobrilha (é tipo uma lagartinha, que faz isto aqui [e mostra a tira mais escura no sobreiro]). Se não sarar, não dá mais cortiça.

Lá vai Vera Santos de bata, mãos nos bolsos à procura dos cigarros. Já decidiu que irá deixar de fumar. Para já, não. Tranquila, mas voz firme, dá ordens como um capataz. Vai de olho no tractorista, o condutor é novo no grupo. Quando o reboque está cheio, é preciso ir à balança pesar a cortiça, descarregar, fazer a contagem, descontar 18% pelo peso da humidade, voltar para trás, voltar a carregar, e tudo de novo. As tarefas repetem-se, só muda o cenário.

— Ser mulher não é complicado. O que um homem faz uma mulher faz igual. Basta ter força de vontade. Mas eu não faço o trabalho dos homens.

Ai faz, faz. Agarra nas pranchas de cortiça e atira-as para o tractor; parece fácil, mas, como diz o encarregado, é raríssimo ver uma mulher a fazer esta tarefa.

À medida que a manhã vai avançando, avança também o calor. Imagine-se a água que sai do corpo em pleno Verão, e em plena actividade física que é subir às árvores, agarrar no machado, lançá-lo contra o sobreiro, puxar a prancha de cortiça, puxar os braços, os músculos, fazer isto centenas de vezes. A força é isto: aguentar. Como é que se continua?

— Com muita água — diz, com pingos a caírem-lhe da testa. — Com muita água é que se aguenta o calor. Por isso é que começamos às 6h, para fugir à hora de maior calor. Senão ainda era pior. Às 6h trabalha-se melhor. Não é, Carlos? — grita ela, a fumar.

Vera gostava de ser tiradora, mas nunca tentou convencer nenhuma mulher a sê-lo. O que um homem faz uma mulher é capaz, defendia há pouco. Mas a força física exigida na tiragem é outra história. Ela própria não arriscaria contratar uma mulher para a tarefa.

— Já vi uma mulher tirar, mas não se compara a um homem, não dá o rendimento que um homem dá. Porque a força e a precisão são totalmente diferentes. Não dá rendimento.

Discriminação?

— Não. Sou mulher. A força de uma mulher e a força de um homem não dá para comparar — repete.

E no campo não se pode perder tempo.

Os molheiros eram pagos pelo pai ao mesmo salário que os tiradores. Achou injusto que eles ganhassem o dobro das mulheres na mesma função. O tirador tem mais trabalho, deve ganhar mais. Paga-lhes, assim, 50 euros; aos tiradores, 95 euros.

Acha-se, então, uma feminista?

— Talvez. Um bocadinho. Acho que se a gente mulheres seguisse em frente com os nossos objectivos éramos tal e qual os homens. E não me venham dizer o contrário.

Passamos por Carlos António. Ele aponta para o alto do sobreiro.

— Este foi muito puxado, diz. Tiraram cortiça até alto de mais.

Nunca ninguém faltou ao respeito a Vera. Os homens dizem palavrões. Pedem-lhe cigarros. Mas faltar ao respeito, isso é que não.

— Nem têm direito para isso. Eu também sou muito respondona. Não deixo pisarem. Por exemplo, eu aqui sou patroa. Se mando uma coisa, têm de o fazer. Se começarem a falar por trás, é um desrespeito. Se começarem com boquinhas, a meterem-se na vida pessoal, é falta de respeito que não permito.

O canto do olho de Vera está sempre a ver o que se passa em campo. Nada lhe escapa. Interrompe a conversa.

— Susana: marca [o sobreiro] e segue para a frente, filha!

Continuando:

— Trabalhamos todos por objectivos: eles têm de me dar a ganhar a mim e eu a eles.

Quando andava no liceu, Vera começou a pensar que queria ter o seu próprio salário. Nunca foi de pedir dinheiro a ninguém, nem ao pai. Estudou até ao 9.º ano, depois resolveu seguir por outros caminhos. Nas férias, ia com o pai para a cortiça. Lembra-se de um homem que lhe dizia:

— És a cara chapada do teu pai.

Ela tinha a resposta na ponta da língua:

— Não sou não, ele tem bigode e eu não.

Nasceu em Montemor-o-Novo e aos dois/ três anos a família mudou-se para a zona do Montijo. É a mais nova de uma família de cinco rapazes. Na perna, tem tatuada a fotografia dos pais. São 17 tatuagens ao todo.

— Este é o nome do meu filho: Ângelo. Aqui é o nome do meu irmão que já faleceu, juntamente com um anjo. Tenho um dragão que simboliza a minha força de vontade, com umas rosas na frente que representa a minha sensibilidade. Tenho uma geisha que simboliza como sou, uma pessoa muito sensível mas muito lutadora. Tenho aqui uma flor de lótus que simboliza um novo começo, que foi agora.

O passo de que fala foi grande. Não apenas pelo que investiu, mas pelo facto de ter enfrentado o pai, como já contámos. Sente a responsabilidade pelos tiradores, também, gente que a seguiu.

— Ficar à frente de um rancho de homens não é para qualquer pessoa. Tenho o apoio de todos, não vou desiludi-los. Vou com isto para a frente. O meu pai achou que passei por cima dele, mas pronto. É preciso ter muita garra e muita força de vontade para conseguir levar isto para a frente, que é o que falta muito em Portugal. Garra? É aquela coisa de querer andar para a frente e querer mais e mais e mais.

Ela que é ambiciosa vê logo quando alguém também o é.

— É a maneira de se jogarem ao trabalho. Sabe aquela vontade de comer o trabalho todo de uma vez?

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A dupla masculina

João está em cima da árvore. Júlio cá em baixo. Quando tiram cortiça, não precisam de definir quem faz o quê, como atacar o sobreiro, como tirar as pranchas. Conhecem-se há anos. Riem-se, cúmplices, quando lhes perguntamos há quantos.

— Foi no ano em que andava eu a aprender a tirar cortiça — responde Júlio.

Foi há 27 anos, Júlio tem 47.

João trabalha na PSP, mas no campo é conhecido pelas piadas. Nem sempre se percebe se está a falar a sério.

— É um sinal da emancipação do sexo feminino — comenta, sobre Vera estar à frente do rancho. — E é uma forma de ela brilhar no meio dos homens — continua.

E brilha?

— Brilha. Pela forma como gere aqui o minigrupo. É honesta. Diz o que tem a dizer. Educada. Respeitadora. É só elogios, senão ela despede-me.

Que características é preciso ter para liderar um rancho de dez homens?

— Tem de ter uma voz dominante, muito dominante, para ser levada de igual para igual. É diferente acatarmos uma sugestão da Vera do que de um homem que soubesse o que é andar de machado na mão. Sem dúvida que ela tem a voz dominante. Quando o machado anda mais devagar, ouve-se logo a voz dela: “Não vieste para aqui fazer a sesta ou passar férias.” Claro que calha mal ouvir isso, ainda mais de uma mulher. Jesus. Dói mesmo. É aquele estigma de ter uma mulher a ralhar connosco.

Se fosse homem, não sentia isso? Pausa. Ouve-se o machado a entrar na árvore.

— Era diferente [pausa]. É um sentimento diferente. São sentimentos muito diferentes.

João tem a teoria de que não há mais mulheres no campo porque não há oportunidades. E não há oportunidades porque os homens não as dão. Passa um moscardo gigante. Ele nem pestaneja.

— Vêem-se mulheres a acompanhar homens. Agora, sozinha, a Vera é o único caso que eu conheço.

O dinheiro que João ganha na cortiça permite-lhe pagar tratamentos médicos ao filho, despesas que diz serem exorbitantes, o seguro do carro, outros extras como beber uns copos. Vem para a cortiça nas folgas da PSP. Acontece trabalhar dias seguidos sem descanso.

Um dia Júlio cortou a mão de João com um machado. São coisas que acontecem, comenta João. Amigos como dantes, sem ressentimentos. Afinal, passam horas e horas juntos durante estas temporadas. Pelo menos das 4h às 17h. Sempre os dois a tirar cortiça da mesma árvore. Muitas vezes, ainda bebem uns copos a seguir. Nunca se zangaram. Nunca. Qual é o segredo da relação?

— Relação?!!! — indigna-se João, de voz levantada. — Nada cá dessas palavras! É convivência.

Entra Júlio na conversa:

— O segredo é o respeito que temos um pelo outro.

E João completa:

— É saber brincar, saber aceitar que nem todos os dias vimos com a mesma disposição, há que saber compreender, há que falar. Compreensão, respeito, amizade. Isto é tão custoso que só funciona se a gente levar isto na brincadeira, dizendo umas asneiras…

Já trabalharam com outros?

— Já. Mas em equipa que ganha não se mexe, conclui João.

Júlio e João são do tempo em que não se usava luvas. A mentalidade, lembram, era diferente. Era a cultura do quanto mais calos nas mãos, mais machos eram os homens.

Quem andava no campo era analfabeto. E quem tinha valor não era quem estudava ou quem tinha pai rico: era quem tinha as mãos sujas, diz João. Era assim que elas avaliavam o homem, não era pelas palavras bonitas, comenta. Machismo puro.

— A senhora já viu o que é andar com as mãos a sangrar semanas inteiras? — pergunta.

Júlio lembra-se das bolhas logo ao primeiro dia. O machado também não tinha cunha para ajudar a descolar a prancha, com medo de ferir o sobreiro, o que tornava a tarefa mais difícil. Hoje faz-se o trabalho mais rápido porque a partir do momento em que a tirada passou dos proprietários para empreiteiros como Vera o objectivo é tirar o máximo no mínimo tempo possível, explicam.

Saltos altos e ginásio

Para quem acorda às 3h, a tarde, supõe-se, seria para fazer a sesta. No caso de Vera, isso não funciona. Ela não pára. Durante a semana, a mãe fica com o filho Ângelo de três anos — o pai sai de casa às 7h, a escola só abre às 7h30.

São agora umas 16h quando entramos em casa de Vera, a cerca de 1h30 do montado alentejano. Com um terraço e uma nespereira ao meio, é uma construção térrea de um andar em forma de L. Vera toma banho, veste-se, põe saltos altos. Vai buscar uma amiga para irem ao ginásio no Montijo, uns 20 minutos de carro. Não gosta da aula de hoje, vai para as máquinas.

Há dois anos, participou no programa de televisão Toca a Mexer, na SIC, que tinha como objectivo perder peso a dançar. Houve um tempo em que dançava em bares. Quando saiu de casa, aos 16 anos, foi trabalhar para Lisboa como empregada de balcão. Depois mudou-se para Setúbal. Tinha três trabalhos, todos a servir, começava às 11h e acabava pelas 6h.

Numa das noites em Setúbal, conheceu o marido, Marcos Santos, brasileiro de Minas Gerais. Foi há quatro anos numa festa da espuma. Ela atirou-lhe um copo de água para a cara. Ele deixou-se ir pelo instinto. Uma semana depois estavam juntos.

Boné na cabeça, tatuagens, é um homem tímido, não muito conversador. Diz ter orgulho na mulher. Dá-lhe força para liderar o rancho.

— Acho bem ela estar a fazer isso que é para mostrar que não são só homens a fazer trabalhos assim.

A caminho de casa da mãe, onde vai ver o filho, Vera pára num café para contratar outro homem que lhe irá mandar a cortiça para o reboque. Não lhe faz muitas perguntas. Agora, só vendo como trabalha, explica.

Ao chegar a casa da mãe, pega em Ângelo que já está no terraço. São umas 20h, ela ainda quer dar-lhe banho. Ficamos na cozinha a conversar.

— Ela tem muitos “adjectivos” — diz a mãe. — Vai sempre em frente, não olha para trás. Pensa que vai, e vai mesmo. Deus lhe dê sorte.

Conselhos que deu à filha para esta nova empreitada?

— Dar respeito às pessoas que tem lá a trabalhar. Cara de respeito. Para não pensarem que é brincadeira. E se não prestarem para trabalhar, manda-os embora e arranja outros que sejam bons.

Vera Santos, uma mulher de machado no meio dos homens, é uma guerreira. Ela própria assim define o que é ser mulher: guerreira.

— Guerreira em todos os aspectos, em família, em trabalho, em tudo. Porque a gente é um bocadinho discriminadas a nível de trabalho, sem dúvida.

Sendo guerreira, há obstáculos. Há que conjugar também com outras facetas da personalidade socialmente atribuídas às mulheres — como o cuidado com a imagem. Combinam-se as facetas separando-as, diz ela. Porque uma coisa é o trabalho, onde está como “maria-rapaz”, “com aquela personalidade forte, aquele espírito forte, aquela força de vontade”. Saindo do trabalho, sente que o seu lado feminino “vem logo ao de cima”. Gosta de se arranjar, de ir ao cabeleireiro, à manicure.

Depois da cortiça, planeia lançar-se na extracção da madeira. Quer ainda fazer o curso de bombeira. Às 22h, a sua energia parece inesgotável.

— Sempre tive aquela ambição de trabalhar até aos 45

50 anos, a partir dali quero meter reforma. Arranja-se energia em qualquer lado enquanto se é novo. Nunca tive medo de trabalhar, nunca tive medo de agarrar numa enxada, nunca tive medo de agarrar em papel e caneta, portanto…

De dançarina e empregada de balcão a empreiteira na cortiça e bombeira, o objectivo a longo prazo é mostrar que nada é impossível.

— E que não se quer só uma coisa, nunca ninguém quer só uma coisa, há sempre pessoas que querem mais algumas coisas. Quem tem força de vontade é capaz de chegar a qualquer lado. É aquele frenesim dentro da gente, aquela energiazinha. Sou ambiciosa.     

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