Um ano presos apenas por Matemática

Não há dados estatísticos sobre os alunos que ficam com a vida suspensa durante um ou mais anos por chumbar a apenas uma disciplina do secundário – muitas vezes Matemática. Nas escolas são quase invisíveis e suspeita-se que muitos acabem por desistir.

Foto
Rui Gaudêncio

Daniel, Gustavo, Joana, José e Rodrigo foram alguns dos alunos que no último ano tiveram as suas vidas suspensas por não terem conseguido chegar aos 9,5 valores em 20 nas duas fases do exame nacional de Matemática e que ontem voltaram às escolas para tentarem, mais uma vez, fazer a única disciplina que os prende ao ensino secundário. Fazem parte de uma multidão “muito difícil de contabilizar” e que “muitas vezes”, acabam por desistir e abandonam o sistema sem deixar rasto, disse ao PÚBLICO um dos dirigentes escolares que se debatem com o problema.

Sabe-se que do total de jovens que nos últimos três anos se apresentaram para fazer o exame nacional de Matemática, mais de 30% eram “externos” ou “autopropostos”, ou seja, pretendiam fazer melhoria de nota à prova de ingresso no ensino superior; chumbaram na frequência; ou optaram por anular a matrícula à disciplina antes do exame para não levarem consigo o peso de uma negativa na classificação interna (que vale 70% da nota final). Também se sabe que a taxa de reprovação rondou os 20% e que do total de alunos que foi à 1.ª fase, 60% voltaram a fazer a prova na 2.ª, porque não haviam atingido os seus objectivos. Mas já não é fácil saber, sem uma investigação aturada, quantos, exactamente, têm a conclusão do secundário presa por apenas uma disciplina, disseram vários dirigentes escolares ao PÚBLICO.

Por várias razões: muitos dos estudantes aproveitam, no ano lectivo seguinte, para se inscreverem não só à disciplina a que chumbaram, mas também a outras cadeiras de opção, numa tentativa de subir a média da classificação interna; outros nem sequer são oficialmente alunos da cadeira que mais os aflige, como Rodrigo, que completou o secundário há um ano, mas não conseguiu alcançar no exame o 9,5 que exigido para utilizar Matemática como específica no acesso ao ensino superior. Neste caso, não pôde frequentar as aulas daquela disciplina como aluno interno a Matemática, em que participou como mero assistente; para efeitos de estatística, foi aluno de Geografia (uma disciplina de opção).

Desaparecer do sistema
Os próprios alunos que frequentam apenas as aulas de uma disciplina não formam, normalmente, um grupo que se distinga numa escola. A não ser que algum director se lembre de quebrar a regra de os distribuir pelas turmas de 12.º ano. Foi o que aconteceu em Setembro de 2013, no Agrupamento de Escolas de Moimenta da Beira, quando o director, Alcides Sarmento, decidiu juntar todos os alunos que haviam chumbado apenas a Matemática na turma A do 12.º ano do Curso de Ciências e Tecnologias.

O ministro da Educação decidira aumentar o número de alunos por turma como medida de racionalização de recursos e a reprodução da lista de 45 alunos tornou-se viral nas redes sociais, como símbolo das consequências da troika. Até que Alcides Sarmento explicou que na única disciplina que efectivamente todos os alunos frequentavam – Matemática – a turma era dividida em duas, cada qual com um professor.

“Quando me apercebi da dimensão que aquilo tinha tomado nas redes sociais, nem queria acreditar… Foi uma loucura”, comenta agora, a rir, Alcides Sarmento. O que para ele representou uma dor de cabeça pôs a nu um problema que, na sua perspectiva, se mantém. Com uma agravante: “Muitos dos alunos que não fazem Matemática à primeira desistem, desaparecem do sistema, provavelmente ficam com o secundário incompleto”, comenta.

Preocupado com o assunto, ele próprio fez um levantamento do que se passou naquele agrupamento em várias séries de anos. Exemplo: Em 2010/2011 15 alunos não ficaram aprovados a Matemática; só se inscreveram nove no ano seguinte e destes só três viriam a fazer a disciplina, passado um ano. Em 2011/ 2012, dos 16 que nesse ano não ficaram aprovados, foram alunos internos 12 e apenas tiveram seis tiveram sucesso.

Para combater o problema, aquele director optou por várias estratégias. Aderiu a um dos projectos que visam diminuir o insucesso no ensino básico (o Turma +) e aplicou aquilo a que chama reorientação vocacional na parte final do primeiro período do 10.º ano e no termo do ano lectivo.

“No fim do 9.º ano, muitos alunos (muitas vezes influenciados pelos pais) resistem a ir para o curso de Línguas e Humanidades (por oferecerem menos saídas, no futuro) e para os cursos profissionais (por os considerarem um recurso). Só no 10.º, quando se confrontam com o insucesso, principalmente a Matemática e Física e Química, aceitam essa possibilidade”. Considera que os alunos mudarem de curso, perdendo um período de aulas ou um ano no seu percurso escolar, é “o menor dos males”: “Antes isso que arrastarem-se até ao 12.º, sentindo que cada vez é mais tarde para mudar”, comenta Alcides Sarmento.

"Vai antes para Direito"
Cristina Coimbra, professora de Matemática da secundária Rainha D. Amélia, de Lisboa, tem a mesma percepção. “Há alunos cujo insucesso é previsível antes de entrarem no 10.º ano, porque simplesmente não vêm minimamente preparados do ensino básico”, afirma. Defende mesmo que um aluno com negativa à disciplina no 9.º ano não devia poder inscrever-se no curso de Ciências e Tecnologias.

Esta professora conta que faz reorientação profissional com ironia, na entrega dos testes: “Muitas vezes, em tom de brincadeira, digo aos meus alunos: Di-rei-to! Vai antes para Direito que a Matemática não há hipótese…”

Há alunos que têm noção disso. Como Gustavo, da Escola Secundária Infanta D. Maria, em Coimbra, que foi para Ciências e Tecnologias para ter mais saídas profissionais no futuro. “Esbarrou” em Física e Química (que entretanto conseguiu fazer) e em Matemática, a única cadeira que desde há um ano lhe falta fazer para terminar o secundário e que espera despachar nesta terça-feira, para depois se candidatar a cursos “sem Matemática”,  “tipo Estudos Europeus ou Relações Internacionais”.

José Ribeiro e Joana Gonçalves, alunos, da secundária Rainha D. Amélia, de Lisboa, são outros bons exemplos. Ela admite que sempre foi “péssima a Matemática” e que encarou o curso de Ciências Sócio Económicas, que tem Matemática A, “como um desafio”. Agora, com o secundário preso pelo resultado do exame de hoje, admite que foi “pior do que pensava”. Porque lhe faltavam bases, admite, “mas também porque os programas são longos, muito exigentes e os professores não têm tempo para tirar dúvidas – eles próprios passam o ano stressadíssimos para conseguir dar a matéria”, diz.

José Ribeiro, também de Lisboa, sonhava com Medicina Veterinária, e só se apercebeu das dificuldades a Matemática no 10.º ano. Nessa altura só não voltou “atrás, para outro curso, para não perder tempo”. Perdeu-o de outra maneira: nesta terça-feira, com 21 anos, fez pelo terceiro ano consecutivo o exame de Matemática. Queixa-se do mesmo que Joana e acrescenta um ponto: “Fui-me apercebendo de que só não tinha dificuldades [à disciplina] quem tinha explicações”. José nunca a pode as pode pagar – “Paciência, uns têm mais sorte que outros. Começou a trabalhar, primeiro a vender fruta, num mercado, depois brinquedos científicos, para contribuir para as despesas da casa.

"Treinos para exames"
Rodrigo Silva, de Coimbra, está a subir a nota de Matemática como aluno externo (porque teve menos de 9,5 no exame) para cumprir o sonho de ser “o primeiro da família a ir para universidade”. Também ele põe a tónica nas explicações. “Era um aluno razoável nas aulas e nos testes, mas o exame tem um tipo de exercícios e de pormenores que é preciso conhecer e treinar. Colegas que tinham menos facilidade do que eu nas aulas acabaram por ter melhores notas – ou notas menos más – no exame, no ano passado”, comenta.

Rodrigo sabe que exigiu um “esforço enorme”, aos pais, quando lhes pediu para lhe pagarem explicações (seis horas por dia, nas últimas semanas). Mas confirmou as suas suspeitas: “A primeira coisa que o explicador disse foi para eu comprar um livro com exercícios de exame e tipo exame. Mais uma despesa… Mas faz a diferença”.

Daniel Lopes, de Vila Real, está com explicações, três horas por semana desde o início do ano lectivo e também diárias, nestas últimas semanas, a fazer exercícios de exames dos anos anteriores. Atleta de alta competição (e por isso com muito tempo dedicado aos treinos), diz que até era bom a Matemática, mas que não se esforçou o suficiente no ano passado. Desta vez, sim – usou as aulas para rever a matéria e as explicações para tirar dúvidas coisa que nas, aulas, diz, “é impossível”, porque “a matéria é muita e as turmas são muito grandes”.

Foi precisamente a pensar nos estudantes que não podem pagar explicações que, sem medo das palavras, Alcides Sarmento instituiu este ano sessões de “treino para exames”. Na escola de José Ribeiro, por exemplo, existem as “aulas de apoio”, também com o fim de contribuir para o sucesso dos alunos, mas “não são suficientes”: “Vamos sempre pelo menos uns sete ou oito alunos, cada um com problemas diferentes. Com 45 minutos por semana ainda mal abrimos os cadernos já a aula está a terminar”, explica. Ainda assim, acredita que é desta que faz a disciplina.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários