Tenho os cruzados acampados à porta

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Agora, quando saio de casa, vejo os cruzados acampados ali à frente em animada conversa numa língua que não compreendo. Desço um bocadinho, em direcção à Rua do Paraíso, e ouço os gritos aflitos dos condenados. Dou a volta ao Campo de Santa Clara e vejo as freiras do convento que deu o nome ao Campo e que desapareceu com o terramoto de 1755 e depois cumprimento marqueses e condes, antes de sair passando sob o arco que leva até ao Mosteiro de São Vicente.

A culpa de o Campo de Santa Clara (ou a minha cabeça) se ter enchido com toda esta gente, mesmo (ou sobretudo) em dias que não são de Feira da Ladra, é de uma pesquisa que fiz sobre a Rua do Paraíso e que me levou até uma dissertação de mestrado intitulada O Campo de Santa Clara, em Lisboa – Cidade, História e Memória/Um Roteiro Cultural, da autoria de Maria Elisabete Gromicho Serol e disponível na Internet.

Toda esta zona era um terreno baldio quando D. Afonso Henriques o escolheu para acampar as suas tropas nos preparativos para a conquista de Lisboa com a ajuda dos cruzados. Do outro lado, na parte ocidental da cidade, acamparam ingleses e normandos, enquanto aqui, em frente às minhas janelas, instalaram-se alemães e flamengos, com D. Afonso Henriques, que terá então prometido a São Vicente mandar erguer um mosteiro neste local se saísse vitorioso na conquista.

O lado esquerdo de quem está de costas para o Tejo, na parte sul do Campo, foi mais tarde utilizado como Campo da Forca, para a aplicação de penas capitais. O lado direito teve um destino mais pacífico: foi aí construído, logo no século XIII, o Convento de Santa Clara, tendo o local sido escolhido devido ao sonho de uma das fundadoras que dizia ter recebido instruções divinas. Chegou a ter, escreve Elisabete Gromicho, “140 freiras de Véu e outras tantas Noviças, Servidoras e ‘mulheres ali depositadas’”.

As religiosas dedicavam-se a actividades culturais, “cultivavam a aprendizagem dos mais diversos géneros literários, bem como a desenvoltura no domínio das línguas […] aplicaram-se ao estudo da música […], dedicavam-se às artes decorativas, ao desenho e pintura, aos bordados a ouro e prata” e “ao desenvolvimento das artes culinárias aliaram os dotes caligráficos, com a escritura de livros culinários”. E tinham como amiga a Infanta D. Maria, filha de D. Manuel, que “terá sido atraída e por sua vez atraído ao Campo de Santa Clara, toda uma elite que fazia ou ambicionava fazer parte da sua Corte”. Mas a vida animada do Convento terminou abruptamente com o terramoto de 1755, que o destruiu completamente.

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No entanto, muitos outros edifícios, de diferentes épocas, resistem ainda no Campo de Santa Clara, o que faz dele um lugar único. O trabalho de Elisabete Gromicho lê-se como um puzzle cujas peças vão encaixando, fechando-se o Campo à medida que cada nova igreja ou palacete entram no círculo: a igreja e mosteiro de São Vicente de Fora (um pouco desviado), a Igreja de Santa Engrácia ou Panteão Nacional, o Palácio dos Condes de Resende (fase inicial séc. XVI, usado como Casão Militar, na esquina com a Rua do Paraíso), o Palácio dos Marqueses do Lavradio (séc. XVIII, onde funcionam os Tribunais Militares), o Palácio Sinel de Cordes (séc. XVIII, actualmente cedido à Trienal de Arquitectura), o Palácio dos Condes de Barbacena (séc. XVIII, Messe dos Oficiais do Exército), o Mercado de Santa Clara (exemplar da arquitectura do ferro, datado de 1877), o Hospital da Marinha, o Conventinho do Desagravo (séc. XVIII, a ser recuperado para escola) e a Fundição de Cima (onde foi feita a estátua equestre de D. José I).

Escreve a autora da dissertação, propondo a criação de um roteiro cultural para a zona: “Portador de uma rica a variada história, incorre o Campo no risco de, quer por desleixo ou ignorância, perder a sua memória e a sua identidade.” Com algumas das instalações militares que há muito ocupam espaços nobres na zona a deixá-los vagos (é o que acontece neste momento como o Casão Militar ou o Hospital da Marinha, por exemplo), é altura de olhar com atenção para o Campo de Santa Clara e perceber que o que ali está é um conjunto excepcional de edifícios que numa volta de 15 minutos contam muitas histórias de Lisboa.

E se lhe dedicarem essa atenção, talvez consigam ouvir, baixinho, as vozes das freiras discutindo o ponto do bordado ou as dos cruzados impacientes pelo assalto final à cidade, ou ainda o Conde de Barbacena a sair de casa de manhã e a dar os bons dias ao Marquês do Lavradio.

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