Sobre a crise dos jornais (2)

As regras do “novo” jornalismo que abandona a mediação pela “leitura” da rede e a pretensa “participação” nela, acabam por substituir uma actividade crucial na democracia por um reforço da demagogia.

No primeiro artigo que aqui escrevi falei de dois aspectos da crise dos jornais e do jornalismo: a decadência de uma cultura das notícias nas redacções em detrimento de um jornalismo opinativo e a aceitação acrítica das “redes sociais” e do chamado “jornalismo do cidadão” como fonte de notícias sem mediação, ou como um agora electrónico em que se possam ver “tendências”. Se a crise das notícias, o terreno sólido do jornalismo, ainda pode ser explicada pela depauperação das redacções, pela escassez de meios e de tempo, pela utilização de trabalho de estagiários e outras formas de trabalho barato, em detrimento de redacções sólidas e experimentadas, abaladas pelo afastamento de muitos dos seus jornalistas seniores, tidos como mais caros, a aceitação acrítica de que o jornalismo “mudou de carácter”, passou a ser “interactivo” com os seus leitores, tem de “modernizar-se” e acompanhar as “novas tendências” da “informação” e usar “novas fontes” e “novos métodos” em resultado da Internet, do Facebook e do Twitter, é para mim uma receita certa para substituir os jornais por um “produto”, ou uma “marca”, ou uma espécie de blogue entre o opinativo, o copy-paste  e o cultural, dependendo dos gostos.

O deslumbramento tecnológico típico dos nossos dias presta-se a muitas ilusões que, ou arrumam os jornais no capítulo da lanterna mágica, quando surgiu o cinema, ou geram uma reacção nostálgica, sobre quão bom é que era o passado, ou resultam num atestado de óbito apressado ao jornalismo como exercício de uma profissão de mediação, com regras próprias e saberes profissionais e uma ética do seu exercício. A ideia utópica é que o que se passa “em rede” é uma espécie de diálogo universal em que todos falam com todos, com base num estatuto de igualdade virtual, em que o que dizem tem potencialmente o mesmo valor, é uma utopia e, pior ainda, uma utopia que iguala a ignorância ao saber. É uma utopia boa para os poderosos, porque não se lhes aplica, mas que deixa para o “povo” um simulacro de participação, e interactividade, que é totalmente manipulável. Não é preciso saber, basta estar “conectado”.

As regras do “novo” jornalismo, que abandona a mediação pela “leitura” da rede e a pretensa “participação” nela, acabam por substituir uma actividade crucial na democracia por um reforço da demagogia e uma pauperização da informação que é vital numa democracia já de si sitiada pela crise económica. Abandonar, quer no jornalismo em papel quer no online, o papel da mediação profissional do jornalista em detrimento do igualitarismo do ruído da rede a que se dá estatuto noticioso tem imensos resultados perversos.

Como o espaço não chega, darei apenas um exemplo do efeito deste tipo de comportamento no acentuar de uma permeabilidade às modas e à efemeridade das modas, que resulta numa falta de variedade e no comportamento de rebanho. Veja-se então o fenómeno de modismo que cria um novo estereótipo de “herói” para a comunicação social, que é promovido em secções sobre “de quem se vai falar no futuro”. (Aliás, é pena que não se faça um balanço sobre que “futuro” tiveram muitos daqueles que eram “prometedores” há um ano ou dois, para se avaliar do critério do julgamento sobre que virtudes eles tinham.)

Há várias características comuns que acentuam a indiferenciação. Como todos os “heróis” mediáticos que hoje circulam nas modas, trata-se de “jovens”. É interessante e irónico ver redacções de quarentões a desenvolverem imensos esforços para fazerem jornais para “jovens” que não os lêem, ou que os lêem cada vez menos, como se o olhar dos “velhos” sobre o que interessa aos “jovens” resolvesse a crise dos jornais em papel, ou mesmo dos jornais online. Essa mitologia da juventude impede, aliás, os jornais de serem melhores e mais eficazes para o seu público natural que são pessoas mais velhas. 

Na fase actual da moda, o estereótipo é o “jovem cientista”, altamente qualificado, quase sempre do domínio das ciências como a física, a astronomia, a biologia ou a medicina, investigador reputado, sempre com uma sanção de qualidade internacional. São estes jovens investigadores pessoas de grande mérito? Sem dúvida, mas não é isso que torna a sua utilização nesta nova forma de “heroicidade” mediática criticável. É que estas carreiras e as áreas em que se exercem aparecem como uma espécie de limbo intangível, em que não entram, por exemplo, as mais sujas humanidades, com a sua relação perigosa com a sociedade e a política. Os astros ou as partículas ou as moléculas são um terreno incontroverso, como as artes ou o desporto o foram a seu tempo, porque o padrão implícito na escolha é o de encontrar um refúgio seguro, e se possível glamoroso, para a vil existência numa sociedade onde há muito poucas coisas tão bonitas e etéreas e inócuas. O mundo destes estereótipos “passa bem”, porque é uma forma moderna de escapismo, uma outra manifestação da mesma natureza dos livros de culinária luxuriante e brilhante das comidas pintadas e envernizadas para saírem bem nas fotografias.

Estas modas mediáticas, acentuadas na rede, enclausuram as suas personagens ficcionais numa redoma de intangibilidade em que escapam ao dirty job de escolher, ao ofício da democracia, em que não são atingidos pela controvérsia a não ser entre os pares. São personalidades que servem de refúgio para a miséria quotidiana da vida social. Há aqui, como já disse, muito escapismo, mas também uma idealização de certas actividades consideradas fora do escrutínio social, “vendidas” numa rede igualitária que os aceita porque são “outros”, e também porque estão longe deles, e não os confrontam na sua pequenez e ignorância. Vivem nos laboratórios, não no mundo que entra na rede como virtual.

A ideologia presente numa sequência que vai da Wikipédia até aos comentários não moderados — um contínuo que tem mais sentido do que parece, porque se baseia na “verdade” que nasce dos grandes números — é a de uma desvalorização do saber e da sua hierarquia, dos conhecimentos adquiridos fora ou dentro da rede, não correspondendo a nenhum esforço estruturado de saber. A rede não é uma metáfora da democracia, e não é neutra face aos poderes e às hierarquias que se geram, seja por razões económicas, sejam nacionais, sejam sociais, ou sejam culturais. A rede, entendida assim, não tem direcção, nem sentido, não implica uma hierarquia e, nela, está-se ainda mais sozinho. Tendo-se todas as possibilidades virtuais, não se tem nenhuma real. Parece uma democracia e um empowerment, mas é um gueto para uma nova forma de pobreza. Lá, não sobrevive aquilo a que chamávamos, no passado, jornais.

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