Se me permite, o senhor é uma besta. Ou não é?

Antes de os blogues e as redes sociais terem aberto a possibilidade de uma pessoa falar para muitas, algo que só estava ao alcance dos meios de comunicação de massas, foram os sites de informação a dar espaço à participação de todos com os comentários online. Esse espaço nem sempre é usado da melhor forma. E nem sempre é bem visto – o que talvez seja injusto.

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A qualidade (ou falta dela) nas caixas de comentários é um tema para todos os jornais online Mariana Soares

Samuel Wilberforce é o nome que salta à memória quando se trata de retratar um dos principais desafios dos media nos nossos dias – os comentários online. O antigo bispo anglicano foi um dos notáveis que, no final de Junho de 1860, se reuniram em Oxford para debater A Origem das Espécies. Numa altura em que a velha academia abria as suas pesadas portas e chamava a comunidade à produção de conhecimento (ainda que uma comunidade muito restrita), Wilberforce usou o espaço que lhe foi concedido para discutir algo tão central quanto a teoria da evolução para expor os oponentes ao ridículo. Preferiu não argumentar.

Charles Darwin encontrava-se doente e não podia estar presente. A defesa da revolucionária tese ficou a cargo de Thomas Henry Huxley. O biólogo esgrimiu razões (algumas, relutantemente), apontou provas, respondeu a dúvidas, a resistências. A informalidade do debate era a que se esperaria encontrar numa universidade a caminho dos 800 anos. O que não impediu Wilberforce de desferir um ataque ad hominem: o clérigo perguntou a Huxley se era da parte do avô ou da avó que pretendia descender do macaco. Imaginemos os risinhos.

O momento ficou marcado para sempre e é indissociável da figura de Samuel Wilberforce. O bispo, que ainda hoje é considerado um dos grandes oradores do seu tempo, ficou para a História como o homem que introduziu uma graçola num debate sério – tivesse a sua pergunta partido da vontade de ridicularizar ou de uma real irritação com uma contenda que punha em causa os fundamentos da Igreja. O próprio Huxley lhe respondeu que não tinha vergonha de descender de um macaco, mas que não sentia o mesmo quanto a estar relacionado com um homem que usasse os seus grandes dons intelectuais para obscurecer a verdade.

A frustração que Huxley sentiu naquele Verão, há mais de 150 anos, é idêntica à que, em 2013, os jornalistas sentem todos os dias: com a Internet, os media deixaram em definitivo de ser unidireccionais (algo que já era contrariado pelas cartas ao director, nos jornais, e pelos fóruns na rádio e na televisão), deram aos leitores a possibilidade de comentar e alargaram o debate; mas, ao contrário do que esperavam, o que aconteceu não foi o florescimento da verdadeira democracia. Os leitores deixaram-nos ficar mal. Tal como os leitores têm expectativas quanto à qualidade dos jornais que lêem, também nas redacções havia uma genuína expectativa sobre os seus leitores que não correspondia à realidade. E a realidade é uma dor-de-cabeça.

O guia de boas práticas que o Fórum Mundial de Editores (FME) publicou recentemente prova-o. A organização da Associação Mundial de Jornais entrevistou directores, editores, jornalistas e gestores de comunidades e redes sociais de 104 meios de comunicação social (incluindo o PÚBLICO), de 63 países, e a ideia de que os comentários online são um problema é transversal. As caixas de comentários são zonas de combate: ao apelo a debates construtivos, os leitores respondem com comentários ofensivos, generalizações, discriminação, propaganda.

Ou talvez não seja bem assim. Os responsáveis editoriais que partilharam as suas agruras com o FME foram os mesmos que indicaram que apenas uma reduzida fatia dos comentários viola os respectivos critérios de publicação: 11%, em média. “A forma como alguns leitores participam – uma minoria, uma pequena fracção – contribui para uma imagem generalizada, negativa, em relação aos leitores”, alerta Marisa Torres da Silva, cujo projecto de pós-doutoramento se centra na forma como os cidadãos participam no espaço mediático e no aproveitamento que os jornalistas fazem desse contributo. “De facto, há pessoas que têm esse elemento disruptivo, que chateiam”, diz ao PÚBLICO, mas “há uma espécie de leitores-escritores que muitas vezes dão contribuições muito boas”.

Voltemos a Oxford: Wilberforce não estava sozinho a discutir com Huxley. Apesar de o debate ter ficado conhecido pelo incidente entre os dois, há dezenas de pessoas e horas de conversa que um relato rápido, a apontar para o inusitado, esconde. Nos comentários também é assim. No entanto, como a conversa se passa entre centenas, milhares ou mesmo dezenas de milhares de pessoas, os descendentes da postura de Wilberforce multiplicaram-se – a terra da abundância ofusca os factos e cria ilusões. Os leitores são vítimas de si próprios.

A academia tem produzido alguns estudos que o demonstram. Em Setembro, um doutorando da Universidade de Kent (Reino Unido), Ian Rowe, apresentou na conferência Eleições, Opinião Pública e Partidos, na Universidade de Lancaster, um estudo de caso sobre a participação dos leitores nas notícias de política do Washington Post, tanto no site do diário norte-americano como na página do jornal no Facebook. Concluiu que os leitores são mais contidos onde podem ser identificados – ou seja, na rede social – e confirmou que, “em linha com pesquisas anteriores, o nível geral de incivilidade em todos os comentários é baixo”.

Nos quase 500 comentários que analisou em cada uma das plataformas, Rowe identificou 30 comentários ofensivos no site (6%) e 13 no Facebook (2,7%). O que não significa que a qualidade dos restantes comentários seja elevada, nem que os valores sejam idênticos para outros órgãos de comunicação ou para países que não os EUA. É fundamental ter em conta a realidade social em que o jornal se insere. A participação popular no Washington Post difere da que se encontra no PÚBLICO (ou no Jakarta Post) porque o contexto é outro.

“Há questões estruturais que impedem uma participação mais rica do ponto de vista do debate político, ou de outro tipo, que tem que ver com o facto de sermos um país com uma democracia muito tardia, com baixos índices de literacia cívica, baixos índices de participação eleitoral. Há toda uma conjugação de factores que impedem que o tipo de debates seja de uma qualidade equiparável a um jornal como o Guardian ou o New York Times. Há uma estrutura que impede que os debates sejam mais qualificados”, afirma Marisa Torres da Silva.

Na tese de doutoramento que defendeu no final de Setembro na Universidade do Minho, Fábio Fonseca Ribeiro sugere que os media devem, por isso, tomar em mãos a “formação dos públicos”. “O registo biográfico, formativo, educacional e subjectivo dos cidadãos presidem a qualquer tentativa de exigir opiniões substantivas e de valor. Por isso, seria de toda a coerência que a possibilidade de debate público alargado fosse acompanhada por uma aposta na formação dos públicos, nomeadamente na disponibilização de materiais que possam ajudar na compreensão ampla dos assuntos”, escreve.

A intervenção dos jornalistas foi um método encontrado nas redacções, empiricamente, para direccionar os debates, aplacar intervenções agressivas e transformar o tom das conversas. “Sabemos que ter a presença da redacção numa fase inicial da discussão melhora o tom da conversa que se segue” e “encoraja pessoas que nunca comentaram a dar esse salto de fé”, refere a gestora de comunidades do Guardian, Laura Oliver, no guia do FME. Os leitores ficam em sentido. É o mesmo que acontece aos jornalistas desde que os leitores existem enquanto interlocutores. “Os jornalistas estão mais alerta quando há comentários”, diz o editor de comunidades e redes sociais do alemão Die Zeit, Sebastian Horn.

O francês Libération encoraja figuras públicas – como políticos – a participar. O Wall Street Journal opta por uma abordagem mais restritiva: só permite comentários a leitores com identidades verificadas pelos serviços do jornal. “A maior parte dos nossos comentários é construtiva. Temos uma comunidade de nomes reais, portanto os nossos leitores não são o cibernauta médio atrás do manto do anonimato”, salienta ao FME a editora de comunidades, Demetria Gagellos. O que remete para outra questão recorrente: o anonimato é bom ou mau?

“Não gosto de me esconder. A minha persona da net sou eu. Faço-o porque sinto que por detrás de um pseudónimo a minha voz tem menos força.” José António Fundo, 42 anos, subdirector da Escola Artística Soares dos Reis, no Porto, é um comentador habitual no PÚBLICO. No sistema de reputação que o jornal introduziu em Novembro de 2012, passando a moderação de comentários para os próprios leitores, está no nível mais elevado – é moderador. Participa por prazer, “que está associado a um espírito de missão necessariamente”. “A minha missão é exercer a minha liberdade de expressão de um modo público. Nunca deveremos ter medo de a exercer. Não é um exclusivo dos jornalistas, a liberdade de expressão. É de todos e devemos cultivar o seu exercício público.”

Sousa da Ponte, pseudónimo de um leitor que há muito se pode ler nas caixas de comentários do PÚBLICO – e um dos mais activos membros da comunidade, “para matar o tédio” –, defende que o anonimato é necessário “para o debate ser inteiramente livre”. Isabel Gonçalves, leitora também, diz não ter razões para se esconder, mas é capaz de elencar algumas razões para “a necessidade do uso de máscaras”: “baixa auto-estima”, “desajustes sociais”, “medo”, “timidez”, “autoprotecção”.

Esta tradutora de 53 anos, que chegou a ser um dos elementos mais interventivos na comunidade do PÚBLICO, deixou de o fazer porque perdeu a “paciência”. “O diálogo construtivo, a crítica esclarecedora, a fundamentação das opiniões, o debate claro e sério, eram o que procurava. A experiência nos comentários do PÚBLICO foi algo frustrante.” Não eram apenas os jornalistas que tinham expectativas elevadas quando se abriram à participação dos leitores. Os leitores também as tinham. Expectativas claramente injustas: mesmo num debate de elite em Oxford pode aparecer um troll a querer desconversar. (Um troll é, na gíria da Internet, um provocador.)

É o que impõe a moderação. Desde que o PÚBLICO começou a permitir comentários, a 21 de Setembro de 2001, os modelos experimentados dentro e fora do jornal foram vários – sem moderação, com pré-moderação, com pós-moderação e com moderação feita pelos próprios leitores, popularizada pelo decano Slashdot, um site dedicado a notícias de tecnologia. Pouco mais de uma década depois, “os leitores sentem que têm o direito de dar as suas contribuições”, lê-se no guia do FME. Sentem que é ali que exercem a sua liberdade de expressão. O que coloca os media numa posição defensiva (até para se precaverem legalmente). “A liberdade de expressão é algo muito diferente. Isto é sobre publicar numa plataforma que é propriedade de alguém, que está aberta a opiniões mas apenas a quem cumpra certas regras”, sublinha a editora de comunidades da Reuters, Margarita Noriega, no mesmo documento. O gestor de comunidades do New York Times, Bassey Etim, completa: “Não somos um organismo do Estado, portanto não somos responsáveis por assegurar a liberdade de expressão”.

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