Resgatar o resgate

O modelo está esgotado e precisa de ser refeito e isso só pode ser realizado com pessoas que o assumam, que conheçam porque falhou e que estejam dispostos a criar os seus futuros e não por quem se sinta mais confortável com o regresso ao passado, porque isso não vai acontecer.

 

A maioria das pessoas está a ficar farta de ouvir falar em crise porque está a vivê-la. Por isso, porque há-de alguém de querer ler coisas sobre a crise?

Um argumento possível reside na frase seguinte: o que pode motivar as pessoas em Portugal e no resto da Europa - sim, não estamos sozinhos, mas jávoltaremos a isto - é que um qualquer indício de solução seja apresentado.

No entanto, como essa solução não se materializará por intervenção divina, mas sim por acção dos homens, mulheres e crianças que habitam este território de mais de 500 milhões de individuos, resta a cada um de nós contribuir à sua maneira para encontrar as soluções. E este é um artigo sobre os primeiros passos para sair da crise a partir do contributo que posso dar, o contributo de um sociólogo formado gestor e que acha que há que compreender as razões da crise, para de seguida tomar opções e depois passar às soluções que, entretanto, foram sendo formuladas e experimentadas.

Em primeiro lugar deixem-me partilhar algo que decorre de ter participado, tal como centenas de milhares de portugueses, nas manifestações de 2 de Março: estou farto de estar sequestrado!

E é assim também que a maioria da população portuguesa (e também a europeia) se sente. Sequestrada pelas decisões políticas e económicas sobre as quais não possui controlo mas que se fazem sentir nas suas vidas.

Em segundo lugar, deixem-me partilhar uma análise sobre o momento que vivemos a partir do final de 2012, porque acho que o primeiro passo para abandonar este estado de crise passa por ajudar a União Europeia a sair do erro em que entrou, ou seja, resgatar o resgate, para salvar a Europa e, no caminho, salvar também Portugal.

Esta análise passa, assim, por assumirmos o evidente, ou seja, que em primeiro lugar os representantes da troika que nos visitam não contam para grande coisa pois estão ao nível de um embaixador (com todo o respeito pelas suas funções) quando se reúne com um líder de um dado país, pois a sua autonomia e capacidade limita-se às instruções que lhe foram dadas e qualquer mudança, inovação ou alteração implica ir perguntar à casa-mãe se ela dá licença para o fazer.

É, também, igualmente necessário assumir uma outra coisa que comporta algum desconforto, ou seja, que as instituições políticas e do sector financeiro europeu e nacional não sabem o que fazer e que, portanto, estão num processo de experimentação. Ou seja, estamos em desgoverno continental na Europa, onde quem lidera não sabe se o que tem feito leva ao que se pretende, ou se o que se passa tem algo a ver com as acções que se tomaram – estamos assim no campo do desconhecido e incerto (faço aqui nota que disse “instituições”e não governantes ou gestores, pois hána governação e gestão ainda pessoas que têm noção do desacerto em que nos encontramos e que tudo pode ainda acontecer entre a melhoria e o desastre).

Passemos ao nível das evidências que nos permitem argumentar que é necessário ajudar as instituições europeias a serem resgatadas. As instituições europeias e nacionais do campo da economia não são capazes de resolver a crise porque ainda não decidiram realizar um mea culpa e em definitivo assumir que a economia é – todas as economias são –cultura. Isto é, determinadas opções de práticas inseridas em processos de produção, consumo e troca de bens e serviços.

É a cultura que molda a economia. Quando há uma crise sistémica, há um sinal de uma crise cultural, de não sustentabilidade de certos valores como princípios orientadores do comportamento económico humano. Assim, apenas quando, e se, mudarem valores culturais fundamentais, podem emergir novas formas de organização económica e instituições para assegurar a sustentabilidade da evolução do sistema económico. A hipótese que aqui se partilha é a de que podemos estar num período desses, de transição histórica.

Chegados a este ponto, onde estão as evidências de erros de resgate e por que necessitamos nós de resgatar os que nos quiseram resgatar e que – não tendo aparentemente outra forma de lidar com o assunto – tentam ganhar tempo continuando a exercer o resgate de Portugal (sim estou a falar da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu).

Como tive ocasião de escrever no livro “Mudança e Rescaldo. As Culturas da Crise Económica”, poderia a União Europeia ter apoiado Portugal em alternativa ao resgate? A resposta é sim, poderia ter sido feito de outra maneira. Mas não foi.

Entretanto, as instituições europeias perceberam o erro e pela prática o próprio BCE o admitiu. O BCE poderia ter comprado os títulos portugueses, como fez poucos meses depois com a Itália e a Espanha, em igual situação, liderando uma intervenção que evitou o resgate em perspectiva. O resgate de Portugal mostra, assim, o erro cometido pela UE e como as perspectivas de cenários futuros sugeridas pelas agências de notação financeira e postas em prática pelas instituições políticas e bancárias da União Europeia minaram a recuperação económica e a soberania política nacional.

 

O resgate de Portugal também mostra como a esfera política da União Europeia sucumbiu aos mercados financeiros desregulamentados. Mostra como o regresso da predominância da política sobre a finança parece cada vez mais difícil de alcançar, dentro do actual cenário.

É por tudo o que, atrás, foi exposto que o resgate tem de ser resgatado sob pena de todos sucumbirmos neste continente à impreparação que levou ao erro e à forma errada de raciocinar institucionalmente e que os últimos 4 anos demonstram ser inadaptada.

Não parece mais ser possível ninguém querer admitir erros e portanto preferir continuar em modo resgate, auto-sequestrando-nos pelas próprias instituições que não se reformam, nem se deixam revolucionar por via da inovação que ainda resta dentro delas, ou pela que se está a formar nas redes e nas praças públicas, à procura de caminhos para a supremacia da política.

Pode-se sempre argumentar que tudo isto não corresponde à realidade, que esta análise está errada, que tudo corre como devia correr e que as pessoas e as instituições reflectem isso. Eu contra-argumentaria que as instituições na Europa se encontram num estado de nervosismo intermitente, ora acham que tudo está a ir para o melhor, ora se sentem à beira do colapso quando uma qualquer variável política, económica ou social não segue o caminho expectável –pode ser o resultado de uma eleição, um comportamento dos mercados, um protesto mais veemente, uma actuação de um país externo, uma flutuação de uma moeda.

E as pessoas o que pensam disto tudo? Acreditando nos dados do último Eurobarómetro (e eu acredito na veracidade científica dos mesmos tal como o Eurostat e a Comissão Europeia acreditam) o que a seguir se descreve é a Europa e o Portugal onde hoje nos movimentamos - e o cenário não é agradável.

No final do ano passado, 80% dos cidadãos da União Europeia não confiavam nos partidos políticos e só33% confiava na União Europeia. Quanto à confiança na Comissão Europeia só40% dos cidadãos europeus manifestava confiança nela e, em média, na Europa (com excepção da Suécia, Finlândia e Luxemburgo) não há nenhum governo em que mais do que metade dos cidadãos confie –na realidade a média Europeia de confiança nos governos está em 27% dos cidadãos e em Portugal é de 22%. Por sua vez, o Banco Central Europeu tem apenas a confiança de 37% dos Europeus (na Alemanha 52% não confiam no BCE, um valor só superado pela desconfiança dos Espanhóis, Irlandeses ou Gregos).

Ao mesmo tempo 75% dos cidadãos da União classifica a situação económica da Europa como má ou muito má e 62% acha que o pior para o emprego está ainda para vir (variando entre os 59% da Alemanha, os 68% da França ou os 79% de Portugal) e quanto à avaliação da capacidade das actuais politicas em acção estarem no bom caminho, para nos fazer sair da crise, apenas 41% da população dos 27 países manifesta uma opinião positiva.  

Se pensarmos que a Democracia é constituída a partir da assumpção de que "Eu" sou soberano e que delego temporariamente a minha soberania nos meus representantes, o TOP dos países onde mais de 50% dos cidadãos acha que "a sua voz não conta no seu país" - e que portanto onde delegar não vale a pena - leva-nos à seguinte conclusão sobre a zona euro: em todos os países com resgate informal e formal (à excepção da Irlanda onde só48% acha que não tem voz) mais de metade da população não acredita que seja ouvido pelos decisores políticos.

Na Europa há apenas 49% de cidadãos que se encontram satisfeitos com a democracia que têm, o que quer dizer que a sociedade europeia está dividida exactamente ao meio, polarizada entre duas visões (e tal varia entre os 70% de Alemães satisfeitos e os insatisfeitos que, por exemplo, são 74% dos Portugueses, 72% dos Italianos ou 66% dos Espanhóis).

Mas há também boas notícias, os cidadãos europeus parecem saber que caminho seguir para sair da crise. Pois 89% dos cidadãos está em acordo com a necessidade de introduzir mudanças, só que esse caminho parece não estar a ser praticado pelos governos e pela União. Senão vejamos, 90% dos cidadãos acha que os Estados devem trabalhar em conjunto, 81% acham que o défice público e a dívida devem ser reduzidos mas que, para a melhoria das economias europeias, se deve em primeiro lugar dar prioridade à melhoria da educação e formação profissional, facilitar a criação de empresas, aumentar a investigação científica e facilitar o crédito às empresas.

Os cidadãos da zona Euro apoiam a criação de Eurobonds na União Europeia, sendo a Bélgica o país mais a favor e a Alemanha o mais contra - os únicos países em que há mais de 50% de cidadãos contra são a Finlândia e a Alemanha, e o “não” ganha apenas com 47% na Áustria e na Estónia. Entre taxar as operações financeiras e taxar os lucros dos bancos, os cidadãos escolhem esta última com 81% de aprovação.

Se fosse pedido aos cidadãos para desenharem cinco políticas económicas para sairmos da crise eles responderiam pela seguinte ordem: modernização do mercado de emprego (81%); economia verde (74%); ajudas à indústria (72%); melhoria da qualidade do sistema de ensino superior (71%) e aumento das verbas de investigação científica (63%).

Por isso, o repto a todos nós (mesmo assumindo o perigo da análise) é assumir que as instituições que herdámos já não funcionam, pois só assim a crise pode ser ultrapassada.

As pessoas na Europa sabem-no, as populações dos países em resgate informal e formal sabem-no, as pessoas nas instituições de governo e financeiras sabem-no. O modelo está esgotado e precisa de ser refeito e isso só pode ser realizado com pessoas que o assumam, que conheçam porque falhou e que estejam dispostos a criar os seus futuros e não por quem se sinta mais confortável com o regresso ao passado, porque isso não vai acontecer.

O primeiro passo é mesmo resgatar o resgate, para se poder resgatar a economia e a política e agindo já para que tal possa ainda ser feito em democracia na Europa.

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