Reflexões sobre o Processo de Bolonha

Em Portugal, à sombra de princípios pretensamente democráticos, parece haver um prazer sádico dos governantes em auscultar os parceiros sociais para decidir precisamente o contrário.

“A vida é um pouco mais complexa do que se diz, e também as circunstâncias. Há uma necessidade premente de mostrar essa complexidade” Marcel Proust

Num país em que, segundo Eça, “não se lê, folheia-se”, foi lido por mim, com merecida atenção, o recente artigo de opinião, Ensino superior um equívoco chamado Bolonha?, da autoria de Hélder Castanheira, docente do ensino superior, saído no PÚBLICO (11/08/2015). Esse artigo, até pela interrogação do respectivo título, trouxe, novamente, para a opinião pública uma questão que bastante tinta fez correr e fará correr.    

Porque, como escreveu T.S. Elliot, “o tempo passado e o tempo presente, fazem ambos parte do tempo futuro”, sobre o polémico “Processo de Bolonha” apresento algumas reflexões recorrendo à minha participação, em representação do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados, no seminário “Reflexos da Declaração de Bolonha” (Novembro/2004), promovido pelo Conselho Nacional das Profissões Liberais, em representação de nove ordens profissionais: médicos, engenheiros, advogados, médicos veterinários, farmacêuticos, médicos dentistas, arquitectos, biólogos e economistas.

Desde já, relevo dois pecados originais do “Processo de Bolonha”. Residem eles na inobservância de dois princípios aí defendidos: 1) “Adopção de um sistema de graus comparável e legível” e 2) “uma certificação de qualidade”. Julgo que isto aconteceu pelo nosso jeito em  complicar as coisas simples e no desejo de ser diferente, abastardando, como tal, a língua de Shakespeare pela tradução forçada para licenciatura da palavra inglesa bachelor .

Desta forma, em vez da adopção do grau de bacharel, deu-se a diminuição do grau de licenciado, para três anos, desvirtuando-se, por completo, a comparabilidade e legibilidade pretendidas num país em que grau de bacharel tem antiga tradição (haja em vista o bacharelato  de Eça de Queiroz) tendo sido recuperado, logo após o 25 de Abril, embora em existência efémera de crisálida, no ensino politécnico e mesmo universitário como aconteceu no curso de Direito.  

Para além disso, ponho sérias reservas que “a adopção de um sistema de graus comparável e legível” não seja seriamente dificultada pela possibilidade dos outros parceiros anglo-saxónicos se verem em palpos-de-aranha para estabelecer a comparação e a legibilidade entre o seu grau de bachelor e o nosso grau de licenciado. Não poucas vezes, o desejo de ser diferente ou original pode ter o seu quê de caricato!

Depois, o que dizer de uma “certificação de qualidade” em que as antigas licenciaturas universitárias foram tratadas como parentes pobres? Assim como as árvores morrem de pé, ao grau de licenciado, “com o prestígio da Universidade que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante” (Adriano Moreira), deveria ter sido extinto dando-lhe equivalência ao grau de mestre (master, na terminologia inglesa). Isto sem qualquer favor, apenas para suavizar a injustiça por ela sofrida relativamente aos actuais mestrados politécnicos. Chego a convencer-me, na peugada de George Canning, que neste pedaço de terra lusitana “há para cada problema uma solução que é fácil, clara e… errada”!

Embora sabendo que “a profecia é algo muito difícil especialmente em relação ao futuro” (Mark Twain), reportando-me à minha participação no supracitado seminário “Reflexos  da Declaração de Bolonha”, tenho como premonitória a minha intervenção no respectivo "Workshop 2”, mesmo antes da aberração das “Novas Oportunidades” ou “Provas de acesso ao ensino superior para maiores de 23 anos”. Nessa minha participação, tive a oportunidade de chamar a atenção para o facto de uma sólida formação inicial dever ser exigida no acesso aos cursos universitários. Situação levada em linha de conta no preâmbulo das conclusões do referido “workshop” em que se lia: “Torna-se imperativo referir que este workshop foi pautado por uma excelente intervenção de todos os participantes, quer qualitativa quer quantitativamente”. Ipso facto, de um conjunto de seis conclusões surge em segundo lugar, a seguinte: “O Processo de Bolonha deverá repensar todo o ensino e não apenas o ensino superior. Torna-se difícil, se não mesmo impossível, reestruturar cursos de ensino superior quando há manifestamente falhas na formação do aluno que se evidenciam aquando da sua presença no mesmo. Estas falhas funcionam como um entrave à fluidez do ensino superior”.

Poderia ter sido o Processo de Bolonha o escoramento de um ensino superior abrindo brechas por todo o lado, qual edifício em ruina por falta de caboucos sólidos, por, através da Lei de Bases do Sistema Educativo (1986), ter sido atribuída a igualdade para a docência do 2.º ciclo do ensino básico, entre uma licenciatura universitária, unicamente para o ensino da Matemática, e uma outra do ensino politécnico, simultaneamente para a docência de Matemática e Ciências da Natureza.

Em resumo, em Portugal, à sombra de princípios pretensamente democráticos, parece haver um prazer sádico dos governantes em auscultar os parceiros sociais, mesmo que possuidores de profissões havidas de “interesse publico”, para decidir precisamente o contrário!

Ex-docente do ensino secundário e universitário e co-autor do blogue De Rerum Natura

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