Quem vê caras…

Se o delinquente for presença assídua nos corredores do poder, as penas costumam caracterizar-se, quase sempre, por um grau insignificante de duração da prisão efectiva.

A liberdade condicional é uma prerrogativa do direito penal de matiz constitucional com vista à reeducação e reinserção social do condenado.

A concessão dessa liberdade, quando se encontra cumprida metade da pena, depende da decisão do juiz do Tribunal de Execução de Penas, decisão essa que é tomada após a instrução de processo demorado e rigoroso, no qual todos os relatórios e pareceres devem defender um juízo de prognose favorável à libertação do recluso.

A instrução desse processo inclui as seguintes fases: relatório dos serviços prisionais sobre a avaliação e a evolução da personalidade do condenado durante a execução da pena; relatório dos serviços de reinserção social, que serve para aquilatar o futuro enquadramento familiar e social do condenado após a sua libertação; parecer do conselho técnico (órgão auxiliar do tribunal) e parecer do Ministério Público, ambos os quais se pronunciam quanto à concessão e condições a que deve ser sujeita a liberdade condicionada do recluso. No que diz respeito a esta última fase, refira-se que, entre o parecer do conselho técnico e o parecer do Ministério Público, o recluso é ouvido pelo tribunal e prestará consentimento à sua liberdade condicional.

Como se depreenderá, são poucos os arguidos beneficiados com a obtenção da liberdade quando apenas metade da pena de prisão se encontra cumprida e mais escassas são também as decisões favoráveis em sede de recurso pelos tribunais da Relação. E isto porque um dos mais graves défices da justiça é a constante falta de consenso na aplicação e interpretação do direito espelhado nos diferentes acórdãos dos tribunais de 2.ª instância.

Dito isto, importa acrescentar que tem prevalecido o indeferimento da liberdade condicional, cumprida apenas metade da pena, não obstante o prognóstico favorável sobre o comportamento futuro do condenado, por se entender não estarem satisfeitas as exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico, a denominada prevenção geral, ou seja, a integração. Assim, clarificando, o poder punitivo do Estado não outorga confiança ao condenado quando só metade da pena se encontra cumprida, pois não acredita que ele se torne parte activa da sociedade e conduza a sua vida de modo responsável.

Pelo exposto se deduz que o que não pode ou deve fazer o poder punitivo do Estado é conceder a liberdade condicional, decorrida apenas metade da pena, a reclusos "bem-educados", de nível requintado, e aos outros, àqueles que não têm a "escolaridade obrigatória", só conceda essa mesma liberdade após terem cumprido cinco sextos da referida pena.

Embora a justiça seja igual para todos os cidadãos, por questões culturais, o status social do delinquente influencia o julgador. E então se o delinquente for presença assídua nos corredores do poder, as penas costumam caracterizar-se, quase sempre, por um grau insignificante de duração da prisão efectiva. Prova disso é que a quantidade de condenados é frequentemente irrisória, e o número de punidos mais irrisório ainda.

A criminalidade, ao contrário do que muitos pensam, não se encontra forçosamente ligada a condições de pobreza. Tal como a violência doméstica, a pedofilia e muitos outros desvios sociais, os ricos e poderosos também dela fazem uso, e de que maneira! Igual uso fazem os ricos e poderosos de um outro tipo de criminalidade, a criminalidade financeira, sobretudo no âmbito dos negócios, criminalidade essa que é perversa e ameaça as estruturas do Estado, atingindo a confiança no próprio sistema financeiro, económico e social.

O recluso sem escolaridade, está bem de ver, não decide adjudicações de obras públicas, não atribui subsídios ou isenções, nem, tão-pouco, licencia empreendimentos. Por conseguinte, a cultura ética de seriedade não se obtém por relatório dos serviços de reinserção social.

São conhecidos de todos nós alguns casos que apoiam o que acabámos de dizer. Para quê nomeá-los se eles são tantos e onde se não encontra gente comum, mas sim gente daquilo a que se convencionou chamar boa sociedade, designadamente políticos, ex-políticos, presidentes de câmara e ex-presidentes de câmara. Fiquemos por aqui, enquanto não vierem outros casos com nomes bem-sonantes e a que, pelo eco das funções que desempenham ou desempenharam, a justiça, como sempre, fechará os olhos porque a venda vai estando cada vez mais curta e a balança, de tão desequilibrada que anda, tombará para o mesmo lado, o lado de quem só vê caras, mas que não quer ver perversões.

Advogado

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