Quando a vanguarda esclarecida saiu à rua

Quando a vanguarda esclarecida saiu à rua Vinte anos depois, quem eram e onde estão hoje os líderes da geração a que chamaram “rasca”?

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Um jovem de corpo franzino e olhar grave é apanhado pelo repórter da SIC, que lhe pergunta o que vão fazer a seguir. A polícia de intervenção acabara de carregar sobre os estudantes que se manifestavam em frente à Assembleia da República, contra o aumento das propinas.

“Vamos tentar saber quem é o responsável pelo corpo de intervenção, o excelentíssimo senhor fascista que manda neste corpo de intervenção, que deve ser alguém”, responde o jovem, João Afonso, estudante de Arquitectura e líder da Associação Académica de Lisboa.

“Começámos por contestar o aumento das propinas, fomos alargando as reivindicações, que se tornaram mais políticas, até chegarmos a exigir a demissão do Governo”, diz agora à Revista 2 João Afonso, que é vereador de Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, eleito pelas listas do PS através da plataforma Cidadãos por Lisboa, de Helena Roseta.

João Afonso era um dos líderes da chamada guerra antipropinas. Representava a faceta apartidária que a caracterizou e lhe deu a originalidade e a força.

O movimento estava no auge, nesse dia 24 de Novembro de 1994, há 20 anos. Ou pelo menos num momento decisivo. Se a intensidade das acções e manifestações começara a enfraquecer, ganhava agora novo impulso, com a própria repressão dos protestos. A violência policial contra a manifestação de 24 de Novembro relançaria o movimento. Duas semanas depois realizava-se uma das maiores manifestações do movimento estudantil português, com cerca de 20 mil participantes. Foi convocada uma greve, que contou com uma adesão sem precedentes. Em consequência dos protestos, o ministro da Educação, Couto dos Santos, foi demitido. Dois anos depois mudaria o ciclo político, com a derrota do PSD e a nomeação de António Guterres para a chefia do Governo, e o recuo da lei da propinas, pelo menos durante algum tempo. Mas como começou o movimento dos estudantes, e porquê?

De início, tudo se passou nos meandros do activismo político lisboeta do PCP e do PSR (Partido Socialista Revolucionário, trotskista, uma das forças que daria origem ao Bloco de Esquerda). O PSD fora reeleito em 1991, e o novo ministro da Educação de Cavaco Silva, Diamantino Durão, começara logo a falar de uma mudança no sistema de financiamento do Ensino Superior, o que deu origem a alguns protestos. Mas não tão importantes como os que contestavam a Prova Geral de Acesso (PGA). Entrou em vigor em 1989 como forma de acesso ao Ensino Superior e consistia em exames de língua portuguesa e cultura geral, sem relação directa com as matérias leccionadas nos últimos anos do Secundário. Isto era apresentado como uma garantia de igualitarismo e justiça, mas não deixou de ser visto como precisamente o contrário. A PGA era uma forma de selecção destinada a favorecer os alunos oriundos das classes altas. Quem tinha tido acesso em casa a uma boa cultura geral estava em vantagem.

A luta contra o aumento das propinas não era uma causa tão óbvia para a esquerda partidária, que ainda tendia a olhar para os estudantes como uma classe privilegiada da sociedade. Se era verdade que o ensino deveria ser “tendencialmente gratuito”, como consagrava a Constituição, nem todos simpatizavam com a ideia de que deveria ser o povo, incluindo os mais pobres, a pagar com os seus impostos um ensino a que só alguns teriam acesso. Tratava-se de passar a pagar o equivalente a seis euros para 250.

E se a causa não era a paixão dos partidos de esquerda, ainda menos interessava às organizações representativas dos estudantes, que na altura eram controladas maioritariamente pela JSD. Depois dos anos intensos após o 25 de Abril, o movimento associativo despolitizara-se. As associações de estudantes passaram a ocupar-se mais do apoio à actividade lectiva, fornecendo apontamentos e fotocópias, e da realização de festas e eventos praxistas.

Depois da tradição heróica da juventude de 1969 e 1974, os anos 80 estão ligados ao hedonismo e individualismo”, disse-nos Ana Drago, dirigente do Bloco de Esquerda e activista do movimento antipropinas dos anos 90. “Os anos 80 são fracos no movimento associativo, embora fortes nos movimentos culturais. São os tempos do Punk, da criação de revistas, etc”. Dominava o individualismo, ligado à ideia dos yuppies, do sucesso financeiro fácil, do consumismo. “Cavaco Silva incentiva essa mentalidade yuppie nos jovens”. Uma mentalidade que floresce nos anos 80, mas que nos 90 não é mais do que frustração.

Havia portanto condições para um reacordar do movimento estudantil, embora as estruturas existentes não estivessem preparadas para o enquadrar e conduzir. As associações de estudantes de esquerda, em Lisboa, começam a organizar a contestação, mas o movimento só ganha ímpeto e força quando se liberta das estruturas partidárias. “O movimento surge e afirma-se contra o controlo das juventudes partidárias”, diz Ana Drago, que é autora de um estudo sobre o movimento estudantil antipropinas, Agitar Antes de Ousar, publicado pelas edições Afrontamento. “Nas assembleias magnas, o discurso que dominava era a crítica às direcções das juventudes partidárias”.

O primeiro momento importante desta autonomização do movimento surge em Março de 1992, quando uma lista independente vence as eleições para a direcção da Associação Académica. António Vigário, líder da famosa Lista E e hoje advogado no Porto, declarou, após a vitória: “Hoje, na Academia, as pessoas começam a acreditar que é possível a AAC ser gerida de forma independente, sem ter nada a ver com os partidos. E esta é talvez a melhor e única forma de lutar contra os problemas que se avizinham”. E estava certo.

Pela mesma altura, na maior faculdade de Coimbra, a de Ciências e Tecnologia, a Lista I, também independente, ganhava a presidência da Associação de Estudantes, sob a liderança de João Paulo Saraiva. “Havia uma lógica segundo a qual as associações de estudantes existiam para servir os partidos. Nós queríamos quebrar essa lógica”, disse à Revista 2 João Paulo Saraiva, que é hoje vereador substituto de João Afonso na Câmara de Lisboa.

Consciente da importância dessa ruptura em relação aos partidos, apoiou Vigário em 92, para evitar as divisões que as direcções das Juventudes Partidárias tentaram promover. Essa sua atitude, explica agora, foi fundamental para permitir a coesão e sobrevivência do movimento que estava a nascer. Outro factor decisivo foi a adesão ao grupo contestatário, em Lisboa, da direcção da Associação de Estudantes de Arquitectura, onde também tinha vencido uma lista independente, dirigida por João Afonso. Quem o diz, hoje, é Rui Almeida Pereira, que presidia à Associação da Escola de Belas Artes, ligada ao PCP.

Rui, que é hoje assessor do vereador João Afonso, foi dos primeiros a compreenderem que as propinas eram um motivo para agregar os estudantes em torno de uma luta contra o regime. “Em Belas Artes não tínhamos dúvidas. O aumento das propinas era inadmissível. Punha em causa o carácter democrático do ensino superior. “O movimento associativo estava tomado pelo sistema, dominado pela JSD. Mas nós sentíamos que havia uma luta a travar. Pensávamos: nós somos jovens, queremos a nossa independência. Não queremos depender dos nossos pais. Queremos ter um futuro e ser nós a escolhê-lo. Queremos pensar pela nossa cabeça”.

Rui Almeida Pereira tinha porém a noção de que o movimento era inicialmente muito fraco, sem expressão junto da massa estudantil, não obstante todos os esforços para parecerem importantes e fortes. “Nós não representávamos ninguém. Éramos um bairro, nada mais. Se Arquitectura não tivesse aderido, não teria acontecido nada”.

O movimento começou com sete associações de estudantes, independentes ou ligadas a partidos de esquerda, mas foi-se alargando. Uma a uma, as associações da JSD foram caindo, e as várias faculdades foram aderindo ao movimento.

“As propinas foram o elemento agregador, mas havia um clima geral de insatisfação”, diz agora João Almeida, que também foi líder do movimento e trabalha agora no pelouro de Direitos Sociais da Câmara de Lisboa. “Discutíamos a justiça ou injustiça das propinas, mas daí partimos para a discussão do papel do Estado, da sua função no financiamento do ensino, na distribuição dos bens sociais”.

Era um desenvolvimento lógico. A resposta à pergunta “Quem deveria pagar o ensino superior?” poderia levar muito longe. O ensino deveria ser financiado por aqueles que dele usufruem, diziam uns. Porque são eles que, acima de tudo, irão beneficiar desse ensino. Com um curso superior, terão mais hipóteses de encontrar um bom emprego, de virem a ser privilegiados na sociedade.

Não, diziam outros. Quem beneficia da existência do ensino superior é a sociedade inteira. Porque a existência de médicos, engenheiros ou professores é do interesse de todos. E irá contribuir para o aumento geral da riqueza, que beneficiará o povo em geral.

Era esta abordagem teórica que fazia sentido para um número cada vez maior de estudantes. Estes, na época, já não eram uma elite da sociedade, lembra Ana Drago. Já tinha ocorrido a democratização do ensino, e quem estava nas universidades eram os filhos de todas as classes sociais, ou pelo menos das classes médias. Nesse sentido, as suas aspirações e interpretações representavam as da sociedade inteira, de que eram uma espécie de vanguarda esclarecida.

No discurso das discussões da época, que eclodiam nas muito participadas RGA (reunião geral de alunos) das várias faculdades, surgia com frequência o tema da Europa e da Comunidade Europeia. Havia um sonho de equiparação à juventude dos países europeus, expectativa que foi criada pela adesão de Portugal à CEE e pelo rápido crescimento económico dos anos 80, empurrado pelos fundos europeus. O anúncio do aumento das propinas em mais de 3000% parecia pôr em causa essa aspiração.

Além disso, havia o pressentimento de que, com os arranjos comunitários em relação ao processo produtivo, nada mais restava a Portugal como bem competitivo do que a Educação. Tornava-se evidente que não seríamos fortes na indústria nem na agricultura ou pescas. No sistema económico de que agora fazíamos parte, ou formávamos uma mão-de-obra altamente competente e qualificada, ou estaríamos condenados ao fracasso.

De uma forma mais ou menos consciente, este sentimento moveu os jovens nos anos 90. Como que uma premonição do abismo que nos esperava. A Educação para todos era o grande bem dos novos tempos democráticos e europeus. E isso ficava agora comprometido, com a instauração das propinas elevadas.

Multiplicaram-se as ocupações de instalações, os debates, mas manifestações. João Paulo Saraiva recorda que havia grupos que viajavam por todo o país para levar a discussão às várias faculdades. Ele próprio demorou 10 anos a concluir um curso de cinco, de tal maneira se empenhou na construção do movimento. Quase ninguém, entre os líderes da altura, fez o curso sem repetir anos.

O movimento assumiu proporções significativas, reconhecem agora os seus protagonistas, também muito por causa dos media. Também nesse sector havia uma revolução em curso. Em 1989 nasceu a TSF. O PÚBLICO começou no ano seguinte. A SIC começa as emissões em 1992, a TVI em 1993.

“Os novos media queriam afirmar-se, e viram neste movimento de jovens a sua oportunidade”, diz João Paulo Saraiva. Alguns líderes do movimento eram jornalistas nestes novos órgãos de comunicação, lembra Ana Drago. Havia uma certa comunhão de ideais. E havia factos para noticiar. Acontecimentos interessantes, animados, protagonizados por jovens, a proporcionar imagens e relatos vivos e apelativos.

O aproveitamento foi recíproco. Os media precisavam de matéria de reportagem, e os jovens antipropinas precisavam de amplificação. Rui Almeida Pereira lembra-se da primeira conferência de imprensa. “Estávamos todos em fila, numa mesa, para falar um de cada vez. Quando chegou a minha vez, fiquei paralisado, só dizendo ‘hum, hum, hum…”

Nunca mais seria assim. Depressa aprenderam a lidar com os media. O que funcionava não eram conferências de imprensa. Eram os happenings e as manifestações. O julgamento simbólico do ministro Couto dos Santos, em Coimbra, que acabou condenado a um banho no Mondego, para “refrescar as ideias”, ou a exibição dos traseiros ao ministro e às câmaras de televisão, no Congresso Nacional do Ensino Superior, no Centro Cultural de Belém.

A exibição dos rabos, onde estava escrito o slogan de todo o período — “Não pagamos!” — foi decidida por elementos do PSR, e não obteve a aprovação da maioria dos líderes contestatários. Mas acabaria por se tornar numa imagem de marca do movimento. Esse gesto de gosto menos unânime e todo um conjunto de elementos de estilo que dominavam as manifestações viriam a justificar o epíteto infeliz de “geração rasca”, nascido num editorial do director do PÚBLICO, Vicente Jorge Silva.

Os líderes do movimento interpretam isso hoje como uma reacção da geração anterior, habituada a ver os movimentos de juventude como algo muito dramático e sisudo. O contexto político do movimento de 1969 não se compadecia, de facto, com brincadeiras, bebedeiras ou slogans cantados à maneira das claques de futebol. O estilo dos jovens que cresceram nos fúteis anos 80 era diferente, e estranho ao romantismo que dominava o imaginário da geração mais velha.

A geração da guerra das propinas, que entretanto se apressou a autodenominar-se como “à rasca”, sentiu-se magoada com a desconsideração. Porque afinal foram eles que ressuscitaram o velho espírito rebelde e contestatário de Abril. Eles são os primeiros, explica João paulo Saraiva, a não sentir e e não ficar paralisados com a desilusão de Abril. “Aqueles que viveram a revolução nos anos da juventude, que eram estudantes universitários e se envolveram nos acontecimentos, ficaram depois tão decepcionados que nunca mais acreditaram que fosse possível fazer alguma coisa para mudar. Nós só recordamos o que havia de festa nesse tempo revolucionário”. Tinham 5, 6 ou 7 anos e recordam a euforia, o sentimento de esperança que reinava. Algo que lhes ficou gravado na memória como um sentimento feliz de acção colectiva. E foi isso que fizeram reviver nos anos 90, durante a sua própria juventude.

E o que fizeram viria a marcá-los para toda a vida. Ana Drago admite que foi a aventura daquele período que constituiu a sua aprendizagem política. Os outros líderes com quem falámos contaram que nunca mais abandonaram a acção política e cívica, nem a atitude e ética que os orientava então.

Muitos dos líderes daquela a que se chamou a “geração rasca” viriam a militar no PS, no PCP, no Bloco de Esquerda. Há quem diga aliás que o BE, nascido em 1999 da fusão da UDP, PSR e Política 21, é um fruto da evolução do grupo de pessoas que nasceu para a política nos anos de brasa entre 1991 e 1995.

Seja em que partido for, ou fora dos partidos, há traços que se mantêm no comportamento de todos eles, dizem alguns dos ex-líderes estudantis de 90. A tendência para agir fora do âmbito dos partidos é um deles. “O gosto de trabalhar com as pessoas, com grupos de cidadãos, com associações de base, de criar movimentos unindo pessoas em torno de causas ou objectivos”, diz João Almeida.

O pragmatismo, acrescenta João Afonso. “Temos uma grande capacidade de dialogar com pessoas de várias tendências políticas, de aceitar ideias diferentes, trabalhar com pessoas de várias proveniências em projectos comuns”.

“Um gosto de discutir ideias, de reflectir sobre as questões, até de mudar de opinião, quando confrontados com argumentos contrários, que nos vem dessa época e nos caracteriza”, diz João Paulo Saraiva. Que acrescenta outro traço de personalidade desta geração que tem agora 40 anos e está à beira de tomar o poder nos vários sectores da vida nacional: “Nós tivémos a experiência de que é possível mudar as coisas. Através da acção colectiva, consegue-se tudo. Nós sabemos que é assim, porque isso aconteceu connosco. E aplicamos essa atitude na nossa prática de hoje”.

João Paulo Saraiva acredita que a sua geração vai mudar muitas coisas na forma de fazer política ou exercer liderança nos próximos tempos. “A diferença vai notar-se”.

João Almeida acha que outra característica da geração é a capacidade de pensar as organizações de forma instrumental. “Nós estamos sempre a criar grupos e organizações, a entrar numas, a sair de outras. Eu pertenci à Política 21, ao Bloco de Esquerda, à ATAC. Estamos sempre ligados a organizações”. João Afonso acrescenta que não têm espírito clubista. Não se mantêm fiéis a um partido ou outro tipo de grupo, só por hábito ou fidelidade oca. Estão numa organização quando a colaboração é operativa, saem ou desfazem o grupo quando ele já não serve os propósitos de acção.

Em muitos casos, os líderes da guerra das propinas mantêm-se unidos como se a luta ainda continuasse. Estão nas mesmas organizações, são amigos, entreajudam-se como se fossem uma associação secreta. “Ainda tenho no telemóvel os números de todos”, diz João Almeida. E João Afonso explica: “Mantemos uma proximidade. Porque há uma preocupação comum com as questões públicas”. Estarem agora juntos nos Direitos Sociais da Câmara não é um acaso.

E parecem trabalhar uns com os outros com o mesmo espírito que os animava naquela época em que Pedro Passos Coelho era o líder da JSD, António José Seguro o líder da JS, e Aníbal Cavaco Silva primeiro-ministro. Talvez as coisas não tenham mudado muito.

Mas o grupo tem a noção de que aquele tempo que marcou as suas vidas não se repetirá. Foi provavelmente o último acto glorioso do movimento estudantil. Tudo aquilo foi possível precisamente porque não havia propinas. O ensino era gratuito e por isso um jovem podia dar-se ao luxo de perder aulas, de perder anos, para se dedicar a tempo inteiro à contestação. “Hoje, não seria possível”, diz João Paulo Saraiva. “Hoje os jovens lutam por se manterem no sistema. Nenhum fará como eu, que passei seis meses sem ir às aulas”. Aquela condição de estudante, de jovem disponível, informado, enquadrado numa estrutura, mas sem grandes responsabilidades familiares ou económicas, desapareceu para sempre. Eram as condições que tornaram possível tanto o Maio de 68, em França, como o movimento antipropinas do início dos anos 90 em Portugal. “Muitos movimentos de mudança social na Europa foram protagonizados pelos estudantes”, diz João Paulo. “Nunca mais acontecerá.”

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