Os “gatunos”

O país ficou espantado com as penas aplicadas aos réus do processo Face Oculta: mais de 17 anos de prisão efectiva para Manuel Godinho (o dono da sucateira), cinco anos para Armando Vara (grande personagem do PS, antigo ministro e antigo vice-presidente do BCP), cinco para José Penedos (que mandava na REN) e quatro para o filho e cadeia também para mais sete criaturas pouco conhecidas do público informado. Este operoso grupo, segundo o tribunal, é condenado por crimes vários, frequentemente cometidos com a ajuda de uma velha figura jurídica a que se chama por amabilidade “tráfego de influências”, em vez de honesta e francamente “roubo ao Estado”. Os condenados ficaram assombrados com a “severidade” dos juízes, porque a história pregressa desta espécie de aventuras tinha até agora acabado bem: os responsáveis pelo BPN, por exemplo, andam por aí à solta.

Mas seria absurdo que, no empobrecimento geral dos portugueses, Godinho, Vara e companhia se conseguissem salvar em nome da sua póstuma importância. Basta sair de casa para ouvir o que a grande maioria do país pensa realmente deles. Pensa que são “gatunos”. E não vale a pena argumentar: um político ou um homem de negócios é sempre “gatuno”. Como explicar, se não por isso, a miséria envergonhada e quase salazarista em que vivemos? Só pelos “gatunos” que nos vigarizaram e roubaram no Governo, nos bancos, nos milhares de burlas do dia-a-dia. A explicação tem uma parte de verdade. Mas não conta que no pequeno universo indígena, em almoços, em jantares, em conversinhas de escritório, em visitas ao “camarada” ou “companheiro” de partido, de repente promovido a ministro, a fraude continua numa enorme inocência.

Advogados dos réus saíram do tribunal prometendo recorrer. Erro deles. Os juízes não têm a miraculosa imunidade dos santos ao ambiente que é o deles. Partilham em maior ou menor grau os sentimentos, os preconceitos, as fúrias do cidadão comum. Isto não quer dizer que atropelem ou adaptem a lei à sua vontade. Mas quer dizer que a sua benevolência varia. Um tribunal que hoje resolva diminuir ou mitigar as penas de “gatunos” desafia a opinião universal, que de resto ele mesmo aprova. É muito difícil resistir às tendências de massa, até quando se tem razão e não há dúvidas. Num caso ambíguo, o que anda no ar invariavelmente prevalece. Enquanto durar o empobrecimento português, as maquinações jurídicas não irão longe.

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