Olhai o Porto a olhar-vos das paredes

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Passar horas a fio a assistir a reuniões do executivo camarário ou a sessões da assembleia municipal tem, ao fim de alguns anos, os seus momentos menos bons. É por isso que quero chamar-vos a atenção para a necessidade de haver algo na sala que nos ajude a ultrapassar esses momentos. E, no Porto, estamos muito bem servidos.br />
A Sala de Sessões está decorada com três tapeçarias desenhadas por Guilherme Camarinha, tão recheadas de pormenores que, ainda hoje, depois de tantos anos com visitas regulares ao local, é possível encontrar algo novo. E o facto de o mesmo espaço ser usado para as sessões do executivo e para a assembleia municipal tem uma vantagem — como os jornalistas se sentam de um lado da sala, nas reuniões do executivo, e do lado oposto, nas sessões da assembleia municipal, a tapeçaria que aparece à sua frente também muda. Já a maior de todas, na parede atrás da mesa da presidência, está sempre visível e também é a mais recheada de histórias. Demorou três anos a ficar pronta, entre 1955 e 1958, e terá mais de oito milhões de pontos de lã.

Guilherme Camarinha nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1912 (m. 1994), e, além de pintor, acabou por se notabilizar pela variada colecção de tapeçarias que desenhou para autarquias ou tribunais. As do Porto foram, como outras, fabricadas na Manufactura de Tapeçarias de Portalegre e representam diferentes aspectos da cidade. As laterais são sobre a produção do vinho do Porto (Faina no Douro) e os festejos sanjoaninos (S. João). A central tem o nome pomposo de Hino em Louvor, Honra e Glória da Cidade do Porto e atravessa diferentes momentos da história portuense. Está lá a conquista da cidade por Vímara Peres, em 868, a construção das naus para a conquista de Ceuta, em 1415, a lenda da carne oferecida, então, pelos portuenses aos marinheiros, “deixando a população da cidade apenas com as tripas para comer, ou as lutas liberais entre 1828 e 1834”.

Na tapeçaria Faina do Douro há juntas de bois que carregam pipas até à beira-mar, homens que as levam para os barcos, marinheiros que se preparam para transportar o vinho rio abaixo, peixeiras que passam e a cidade em fundo, com a Sé, a Torre dos Clérigos e o Mosteiro da Serra do Pilar, em Gaia, a flutuarem sob um friso de folhas de uva. Na tapeçaria S. João há balões a erguerem-se no ar e alho-porro nas mãos dos festeiros; há manjericos à espera de comprador e música que sai de bombos, guitarras e acordeões; há fogueiras e arcos de S. João. Vá lá, não há martelos sanjoaninos, mas na década de 50 eles ainda não tinham sido inventados.

Os vários tons de azul, o vermelho e o castanho que atravessam as três peças contribuem para a unidade do conjunto. Há poucos anos, a tapeçaria central foi emprestada ao Museu da Presidência por alguns meses e a parede nua e branca por trás da mesa da presidência era um desconsolo de dar pena.

Não sei se os munícipes que aparecem nas sessões públicas e esperam horas para poder intervir por breves minutos também se entretêm a observar as peças de Guilherme Camarinha. Espero que sim ou que encontrem outro ponto de interesse, se a conversa entre os vereadores ou os deputados municipais se estender para lá do razoável. Uma colega, numa noite particularmente desinteressante da assembleia municipal, desenhou com todos os pormenores um dos dois candelabros de braços cheios de curvas da sala. As tapeçarias eram demasiado difíceis para passar ao papel.

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