Memórias de Família

Memórias de Família

O soldado que conheceu de perto o Cristo das Trincheiras

António da Silva Pinheiro chegou a ser dado como morto nos jornais

A única certeza de António Machado era aquela fotografia, de um homem aprumado, fardado, montado num cavalo, a data que aponta para o ano de 1918 e a localização: França. O homem a cavalo é António da Silva Pinheiro, bisavô de António Machado, que integrou o Corpo Expedicionário Português. O resto são pouco mais que mitos, rumores e histórias por confirmar, que o bisneto, de 25 anos, bem gostava de ver deslindados.

António Machado sabe que o bisavô nasceu a 19 de Janeiro de 1896, no Porto, e que foi para a Grande Guerra, como soldado, mas pouco mais. Pelo menos, pouco mais que defenda com unhas e dentes. Tem muitas dúvidas. A fotografia induziu-o em erro, e pensou que o avô fizesse parte de algum grupo de cavalaria, mas, afinal, diz agora que ele era da Infantaria.

“Há histórias que circulam na família, mas não sei se passam de rumores. Diz-se que ele chegou a ser dado como morto, nos jornais, mas afinal regressou. E conta-se também que ele estava no contingente que levou o Cristo das Trincheiras para as linhas recuadas, mas não sei se será um mito”, diz ao PÚBLICO o bisneto do soldado português.

A interacção de António da Silva Pinheiro com o Cristo das Trincheiras até pode ser um mito familiar, mas não é de todo improvável que o soldado se tenha cruzado com a imagem que repousa, hoje, na Casa do Capítulo do Mosteiro da Batalha, velando o túmulo do Soldado Desconhecido.

A imagem do Cristo crucificado estava numa intersecção de estradas, no sector português da Flandres, entre as localidades de Lacouture e Neuve-Chapelle. A figura era uma companhia diária dos soldados portugueses e, tal como eles, sofreu duramente com a ofensiva alemã de 9 de Abril de 1918, que ficou conhecida como a Batalha de la Lys. No final dos bombardeamentos, a imagem perdera uma das mãos, parte das pernas, ambos os pés e tivera o peito atravessado por uma bela. Neuve-Chapelle tinha sido quase varrida do mapa, os mortos portugueses ascendiam a mais de 7500, mas o Cristo, ainda que mutilado, continuava no seu lugar.

A imagem estava tão entranhada nas memórias dos soldados que viveram esse dia que, em 1958, o Governo Português pediu ao Governo Francês que deixasse o Cristo vir para Portugal. A imagem, que permanecera no mesmo local, nos 40 anos que se tinham passado desde o final da guerra, foi então transportada de avião para Lisboa a 4 de Abril de 1958 e, quatro dias depois, de carro para a Batalha.

Uma vez que o Cristo francês nunca terá deixado o local onde estava implantado, até ser transferido para Portugal, é muito provável que história de família de António Machado, sobre um alegado transporte da imagem para as linhas recuadas, não passe mesmo de um mito. Mas poucos duvidarão que António da Silva Pinheiro se cruzou com ele. Sem grandes certezas, o bisneto agarra-se à fotografia, provavelmente tirada em campanha, de Silva Pinheiro a cavalo e confessa que atribui ao documento “um valor inestimável”.
 

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