O rigor e o sofrimento na informação televisiva

O direito à imagem do José não tinha sido violado.

José tinha-se imolado pelo fogo publicamente. O facto foi muito noticiado e houve um canal de televisão que fez uma reportagem para o seu noticiário das 20 horas. Nessa reportagem, transmitiu uma entrevista com um amigo do José, a que se seguiram imagens da entrada do hospital onde o mesmo estava internado e, depois, de um quarto do hospital em que se visualizava o tronco de um doente, todo coberto de ligaduras, incluindo a face, à exceção dos olhos, com 90% do corpo queimado, e ligado a um ventilador, que assegurava a continuação da sua respiração. Acrescente-se que as imagens captadas demonstravam o sofrimento do doente que estava a ser filmado.

Joana e Pedro, viúva e filho do José, a quem nunca tinha sido permitida a entrada no hospital, ao verem essa reportagem, sofreram uma dor forte e intensa, as imagens ficaram-lhes para sempre na memória, causaram-lhes pesadelos, convictos como estavam de que as imagens em causa eram do marido e pai. Foram, de resto, interpelados por muitas pessoas que tinham sabido do suicídio através da reportagem televisiva, o que as obrigou a reviver (e a sofrer) diversas vezes a trágica morte do José.

Contactaram a estação de televisão, invocando a violação do direito à imagem do José e do seu próprio direito à reserva da vida privada. Mas o canal de televisão respondeu-lhes que não cometera qualquer ilegalidade, já que as imagens transmitidas do doente eram de arquivo e não respeitavam ao José, pelo que não tinha de pedir qualquer autorização, e os factos que noticiara tinham decorrido num espaço público e eram relevantes do ponto de vista social, pelo que se limitara a cumprir o seu dever/direito de informar.

Recorreram, então, mãe e filho, aos tribunais, pedindo uma indemnização de 40 mil euros, pelo sofrimento e angústia que lhes havia sido causado pela reportagem em causa.

Em tribunal ficou provado que imagens transmitidas não continham a indicação de se tratar de imagens de arquivo, o que criara na Joana e no Pedro a convicção de que a imagem do doente envolto em ligaduras e ligado a um ventilador correspondia à pessoa de seu pai e marido. E naturalmente que da transmissão dessa reportagem e imagens tinha resultado um sofrimento acrescido para ambos. Mas resultou também provado que as imagens em causa não retratavam o José e tinham sido captadas anos antes noutro hospital.

Perante estes factos, os tribunais, laboriosamente como é seu timbre, declararam o direito. E falaram a mais do que uma voz. No tribunal da 1.ª instância e no tribunal da relação, o canal de televisão foi condenado a indemnizar mãe e filho na quantia de 10 mil euros a cada uma.

Para estes tribunais, o canal televisivo tinha violado uma disposição do Código Deontológico dos Jornalistas que determina que, na sua prática profissional, estes devem “usar como critério fundamental a identificação das fontes”, o que não tinha sido feito ao não constar das imagens transmitidas que as mesmas eram de arquivo, e também tinham violado a reserva da vida privada das queixosas ao divulgar, da forma como o fizera, o suicídio do José.

Recorreu então o canal para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que, em  2 de Dezembro de 2013, pelo teclado dos juízes conselheiros Paulo Sá, Garcia Calejo e Hélder Roque, veio revogar as anteriores decisões.

Para o STJ, nem estava em causa o direito à imagem do José — porque a sua imagem não tinha sido transmitida nem a intimidade da Joana e do Pedro tinha sido violada pelas notícias já que fora o José que optara por publicamente se imolar pelo fogo. E se era natural que mulher e filho gostassem de sofrer em silêncio e na intimidade a sua dor, não podia esse desejo ter-se por violado ilicitamente pela notícia em causa. Porque a liberdade de expressão e o direito à informação não podiam deixar de ser tidos em conta. Para o STJ, todas as notícias que relatam um grave acidente, uma catástrofe natural ou um ato de desespero que deixa determinada pessoa em risco de vida criam nos seus familiares um agravamento da ansiedade e do sofrimento mas nem por isso dão direito a uma indemnização porque não são ilícitas.

Concordou, no entanto, o STJ que o canal televisivo devia ter informado os leitores de que estava a utilizar imagens de arquivo e, ao não fazê-lo, violara uma outra disposição do Código Deontológico dos Jornalistas que determina que o jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão. E que tal atuação causara um aumento de sofrimento à mulher e ao filho do José por se terem convencido de que estavam a ver o seu familiar em sofrimento.

Mas, no entender do STJ, tal aumento do sofrimento tivera uma dimensão reduzida, face ao grande sofrimento — esse, sim, imenso   resultante da imolação e subsequente morte. E, face ao exíguo significado do aumento do dano, conclui o STJ não se justificar atribuir uma compensação pelo mesmo, absolvendo o canal televisivo.

Advogado; ftmota@netcabo.pt

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