O Panteão Nacional

Quem vem a seguir? É esse o problema, para que queria dar a minha opinião, com uma resposta ao mesmo tempo simples e complexa: “Ninguém”, como a do “Romeiro” do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett.

Como é evidente, falar hoje do Panteão Nacional é falar de Eusébio, como, há alguns anos, teria sido falar de Amália. A Assembleia da República assim quis que as duas grandes figuras do futebol e do fado fossem panteonizadas.

Por pouco, voltaríamos aos três FFF — Futebol, Fado e Fátima — que foram considerados como símbolos do Estado Novo e que, afinal, talvez não fossem tanto, como um dia tentei explicar num artigo do jornal Le Monde Diplomatique. De resto, hoje, mais do que nunca, vivemos esta trilogia: com a febre do Futebol (que há muito, na sua versão profissional, deixou de ser um desporto para ser um espectáculo dos estádios, mas, sobretudo, um espectáculo televisivo, que move milhões); com a homenagem ao Fado que se tornou “Património da Humanidade”, tendo excelentes executantes que seguiram o exemplo de Amália (e de Carlos do Carmo) de transformar o fado marialva e fatídico (fatum significa, como se sabe, “fado” ou “destino”) numa canção com outro tipo de valores, sem perder a toada fadista; e com a importância nacional e ecuménica atribuída a Fátima, dado que o “milagre” é particularmente sensível em tempos de doença, de austeridade e de fome (assim sucedeu em 1917 e anos seguintes e acontece agora), e em que a fé impera sobre a razão. Ou seja, são três fenómenos sociais que nenhum argumento lógico ou ético parece poder abater. Por isso, os deputados votaram — da direita à esquerda — na trasladação de Amália e de Eusébio para o Panteão (no mais recente caso, apesar das despesas que daí advinham em momento de crise financeira) e quase nenhuma voz lançou a tão simples questão de discutir se era correcta a transformação destes ilustres mortais em “imortais”.  Que eu visse (não sou consultor de blogues, nem participo em redes sociais), fê-lo o meu colega João Medina no seu blogue e escreveu António Valdemar neste jornal sobre os “vizinhos da sala 3” (onde Eusébio passou a estar no Panteão) que, por certo, teriam estranhado a presença de mais um companheiro de viagem e de culto cívico.

Mas não vou romper com o estranho silêncio da crítica, pondo em causa a recente panteonização, aliás pouco inesperada de Eusébio (estamos ou não numa “civilização do espectáculo”?), pelo qual tenho a admiração de quem o viu jogar e a simpatia humana que naturalmente infundia. O que quero aqui discutir é sim, neste ano de 2015, a existência do Panteão como organismo vivo que recebe afinal algumas personalidades consideradas “imortais”: o lugar destinado “a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa de valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”, como reza (afinal de forma genérica e ambígua) a Lei n.º 28/2000, de 29 de Novembro.

É difícil, com efeito, definir esses eleitos. É verdade que, de forma idêntica, é difícil saber quem merece entrar numa Academia — o nome de “imortais” surgiu na Académie Française e nela entraram também, por certo, figuras duvidosas, em função dos valores de cada circunstância — ou quem merece ser condecorado pelo Presidente da República com as ordens honoríficas ou quem merece um prémio, mesmo o Prémio Nobel, que todos os anos se discute se foi justo, ou não, ser atribuído a alguém, nas suas diversas modalidades. Veja-se a lista dos indevidamente chamados “prémios Nobel da Economia” e talvez se fique um pouco espantado com a sua atribuição a certas personalidades. O mesmo, de resto, se passava no tempo de outras oligarquias — “outras” porque vivemos (não tenhamos ilusões) numa oligarquia, à sombra do Poder do Capital, muito mais do que numa democracia, que supõe valores que foram relegados para segundo plano. Recorde-se o que se passava na Monarquia Constitucional com a atribuição de títulos, que tornou popular o ditado: “Foge cão que te fazem barão! Mas para onde se me fazem visconde?”. Pois é, mas o Panteão ou, como prefiro, o Pantheon, dado que a palavra assim escrita está mais próxima da sua origem grega — Pan-Theon, “todos os deuses” — é o lugar de eleição da Pátria, o lugar da Memória das memórias, dos Memoráveis mais memoráveis.

Como surgiu afinal o Panteão ou o Pantheon? Podemos obviamente recordar o santuário de todos os deuses, na Grécia ou na Roma antigas. Mas os túmulos da memória, os memoriais ou os cenotáfios (placas que recordam os que morreram com “fama de heróis”) aparecem desde a Antiguidade e são retomados ao longo da história. Foi, porém, a Revolução Francesa que criou o Panteão como lugar oficial de culto nacional dos “notáveis”. Mirabeau e Voltaire terão sido os primeiros a ocupar a igreja de Sainte Geneviève, laicizada com a Revolução e transformada em Panthéon National. E continuaram a entrar nela figuras ilustres até porque o movimento republicano foi ali — como veio a ser em Portugal — animado pelo Positivismo de Comte, que criou uma “religião da Humanidade”, na qual se apresentavam como exemplos os mortos ilustres, quer no Panteão, quer no Calendário positivista, quer nos Centenários, quer mesmo em templos construídos para o efeito. Mas panteões, oficiais ou não, existem de uma forma ou de outra em muitos países e em diversos lugares, com personalidades que se crê terem feito parte fundamental das suas histórias nacionais, sejam reis, governantes (mesmo que viessem a ser considerados ditadores), cientistas, artistas ou escritores. A Basilica di Santa Croce, em Florença, é disso um peculiar exemplo.

Portugal não deixou de seguir o mesmo rumo. É claro que se quis panteonizar os mosteiros da Batalha (onde estão alguns dos reis da dinastia de Avis, mas também os dois túmulos dos “soldados desconhecidos” da Grande Guerra, numa forma de a República eternizar o povo combatente e sacrificado, anónimo, que se repetiu em todas as vilas e cidades em múltiplos monumentos, por vezes com a identificação dos “heróis”) e dos Jerónimos (onde foram sepultados membros da Casa Real — que teve o seu Panteão da dinastia de Bragança em S. Vicente de Fora — mas onde também se celebram Camões, Vasco da Gama e Alexandre Herculano). E é verdade que em Coimbra houve a prática, já mais recente, de conceder à igreja de Santa Cruz o sentido de “Panteão Nacional”, pois ali estão sepultados, em ricos túmulos do século XVI, os dois primeiros reis de Portugal (D. Afonso Henriques e D. Sancho I). Todavia, o liberalismo quis criar, como na França, o seu próprio “Panteão Nacional”, que surgiu por decreto de Passos Manuel de 1836 sem lugar definido, assim como a I República em 1916 (em tempo de governo de guerra da “Aliança Sagrada”, de António José de Almeida e de Afonso Costa) deliberou, por lei, instituir o Panteão Nacional na igreja sempre inacabada de Santa Engrácia, obras eternas, iniciadas no século XVIII e cuja imagem foi sintetizada no provérbio popular de “obras de Santa Engrácia”.

Mas o certo é que, na prática, o Panteão Nacional é uma obra do Estado Novo, pois só em 1 de Dezembro  — dia da Restauração — do ano de 1966 foi inaugurado, com a presença do Cardeal Cerejeira, do presidente da República Américo Tomás e do presidente do Conselho Oliveira Salazar. Recordemos que estávamos então em plena “Guerra do Ultramar”, em que “heróis” eram celebrados todos os anos pelo 10 de Junho e em que Eusébio representava então o “ultramarino” negro — tão português como outros — que deslumbrava o mundo na “equipa das quinas”. Para ali foram então trasladados os corpos dos escritores Almeida Garrett, Guerra Junqueiro e João de Deus, liberais e republicanos, que, devido ao seu sentir nacionalista e popular, não deixaram de sensibilizar o salazarismo. E vieram também Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona. Ou seja, o Estado Novo manteve-se respeitoso em relação ao regime republicano, sepultando ali Teófilo, o primeiro presidente da República, que o foi na qualidade de presidente do Governo Provisório de 1910-1911; o presidente Sidónio, que, de alguma forma, e sem dúvida de modo indevido, era em certos meios considerado o precursor do Estado Novo e até do fascismo; e o seu próprio presidente mais carismático, Carmona, que o fora desde 1926 (ainda na Ditadura Militar, considerada “Nacional”) até 1951, ano da sua morte. Afinal era o naipe dos políticos “imortais” que se poderia esperar.

Depois de 1974, verificou-se um novo rumo, com algumas contradições, como têm sido ambíguos e contraditórios os caminhos depois de Abril, onde um ideal socialista ou, pelo menos, social se mistura, altera ou é negado pela força avassaladora do neoliberalismo, que se vai afirmando e consolidando nesta “Europa” dominada por uma nova onda capitalista. Assim, afirma-se também um verniz nacional ou mesmo nacionalista, ao lado de uma prática anti-social, com uma demagogia que, espantosamente, vem de todo o lado, abalando uma coerência que ainda se vislumbra em alguns movimentos políticos.

Para o Panteão vieram Humberto Delgado que, além de ter sido o mais combativo candidato à presidência pela oposição, fora morto pela PIDE em Villanueva del Fresno. Para ali foi num carismático 5 de Outubro de 1990, como o poderia ter acompanhado Norton de Matos. Em 2004 veio Manuel de Arriaga, de facto e de direito o primeiro presidente da República eleito, embora — como a Constituição de 1911 mandava — em Congresso da República e não por sufrágio universal. Aquilino Ribeiro, um dos mais significativos escritores da Respublica, que melhor assimilou e divulgou de uma forma universal o falar popular das suas terras da Beira, para ali foi em 2007, como poderia ter ido Torga e a sua alma de independente e de duro trasmontano, ou o nosso único Nobel da literatura, Saramago, cujas cinzas preferiu que repousassem pacatamente junto da oliveira da sua terra-natal trasladada para junto da Casa dos Bicos. E, finalmente, veio Sophia de Mello Breyner, em 2014, a poeta de Abril e de todos os Abris do Mundo e dos Tempos. Amália veio, antes, em 2001, e Eusébio fechou o ciclo numa trasladação apoteótica e de expressão popular própria deste tempo que vivemos. Nenhum cientista, nenhum escultor, pintor, músico ou arquitecto lá está, nenhum herói do 25 de Abril e da Liberdade conquistada nos quartéis e na rua em 1974. Seria difícil a escolha e, quando tal ideia foi ventilada, acabou por não vir Salgueiro Maia.

Quem vem a seguir? É esse o problema, para que queria dar a minha opinião, com uma resposta ao mesmo tempo simples e complexa: “Ninguém”, como a do “Romeiro” do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. Assim simbolizaríamos, em duas palavras, “Todos” e “Nenhuns” — afinal a “Alma Universal da Pátria”, sem debates que não houve, neste país dominado pelas elites do Poder, que se dizem representativas e que, nestes tempos pragmáticos, se têm afastado de uma cultura crítica. O Panteão Nacional ficaria como uma Memória da História, com as afirmações, as contradições e os silêncios que ela nos coloca quotidianamente, a ponto de nos interrogarmos sempre: Que História? Seria apenas, e era muito, um Museu vivo das suas representações, com as dúvidas e as ambiguidades que lhe são próprias. Já o é afinal. Apenas seria assim e de forma assumida para todo o Sempre.

Coimbra, 30 de Julho de 2015, no dia da Jubilação de Fernando Catroga, um dos historiadores que melhor estudou a Memória

Professor catedrático aposentado da Faculdade e Letras da Universidade de Coimbra, historiador

 

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