O intelectual acabou?

Quem são, o que podem, o que move os intelectuais num tempo que os tornou mais públicos do que nunca? Fala-se de declínio do quotidiano e do pensamento. Será? A relação com o poder, a mediatização, as celebridades e o que fazer com toda a informação num mundo que parece perdido em torno da palavra “crise”.

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A profissão não existe. “Intelectual público procura-se” é um enunciado que não cabe em páginas de classificados. Não há um rosto, um perfil e, salvo excepções, ninguém veio a público arrogar-se: “Eu sou intelectual.” “O intelectual desapareceu no sentido de ser alguém que vem trazer uma verdade universal”, afirma José Gil, filósofo, ensaísta com vasta obra onde pensa a identidade portuguesa, a ética, a estética, as relações de poder, o espaço onde se movem também os chamados “intelectuais”. Em vários tempos, houve quem viesse apontar direcções. E agora? Não há um nome. Os intelectuais que se seguem, em teoria, podem ser tantos quantas as audiências. “Já não é ‘a’ audiência. Mas ser ou não ser intelectual e ser ou não ser um intelectual público é uma qualidade que precisa do reconhecimento do outro e suscita cada vez mais alguma perplexidade.” 

“Eu não me vejo como um intelectual”, declara Pedro Mexia, escritor, poeta, crítico literário, comentador. “Desconfio dessa palavra”, diz Maria Filomena Molder, filósofa, ensaísta. “Não sei o que isso seja”, refere António Pinho Vargas, compositor, autor de uma tese sobre música e poder. “Tenho umas saudades imensas de Eduardo Prado Coelho”, confessa Delfim Sardo, professor, curador e crítico de artes plásticas, sem encontrar outro nome em Portugal que congregue a “invulgar” capacidade de estar junto ao quotidiano e o distanciamento necessário para o problematizar. No seu entender, condições indissociáveis da ideia de intelectual. “É o dono de um saber estruturado”, arrisca Esther Mucznik, socióloga. “É um editor de ideias”, resume Rui Ramos, historiador, colunista. “Alguém que se distingue pelo argumento”, sublinha António Pinto Ribeiro, professor, programador cultural, ensaísta especializado em estética e teoria da cultura. “O intelectual desapareceu”, afirma José Gil, considerado em 2005 pela revista francesa Le Nouvel Observateur um dos 25 grandes pensadores a nível mundial.

O tema, a começar pela expressão, gera controvérsia. O que é um intelectual público, hoje, o que se espera dele e o que de facto a sociedade pode esperar dessa figura algo vaga, contaminada pela nostalgia e pelo que nela se projecta de capacidade de organizar e interpretar um colectivo? Alguém relevante para a sociedade ou, como disse Edward Said (n. 1935) — pensador de origem palestiniana —, capaz de projectar a liberdade humana e o conhecimento e com isso abanar ou perturbar o statu quo sem esquecer que faz parte dessa sociedade, defendendo essa sabedoria o mais que lhe for possível, sempre num equilíbrio entre o público e o privado? José Gil não diz nada de muito diferente ao afirmar que o intelectual é aquele que “ajuda a pensar uma relação de verdade e de liberdade” e que está na posse de uma “competência”. É mais pessimista quando declara que a figura tutelar, o sábio que nos vem dizer o que fazer, o messias, o salvador, acabou. “Michel Foucault [1926-1984] anunciou esse fim nos anos [19]70, quando ser intelectual ainda era profissão. Nesse sentido, o intelectual desapareceu e não pode nada perante a actual crise ocidental de valores.” O que leva então à intervenção, a um discurso que persiste, dentro das suas limitações de verdade e de liberdade, a pensar relações de poder, a exercitar enunciados? Não é uma carreira, não é uma profissão, “não chamem para aqui a utilidade no sentido mais comum do termo”, refere agora Esther Mucznik.

Edward Said está no outro lado do pensamento da judaica Mucznik, mas um e outro vêm defender o debate público como essencial num quadro democrático onde se deve exercer o processo intelectual: o da procura de um saber maior, como precisa Gil. Said tem sido um dos nomes mais referidos em Harvard desde que esta universidade norte-americana começou a organizar debates anuais sobre o papel do intelectual público nas sociedades actuais. A par com a escritora Toni Morrison (n. 1931), Nobel da Literatura em 1993, o sociólogo polaco Zygmunt Bauman (n. 1925) ou o linguista e activista político Noam Chomsky (n. 1928), para citar alguns dos pensadores vivos que têm estado em primeiro plano nestes debates onde a designação “intelectual público” aparece sob várias definições: a do sábio fechado na sua cátedra, a do que se tornou vítima da mercantilização do saber e da fama a ela associada ou a de quem caiu numa especialização excessiva, incapaz de um olhar transversal sobre a realidade onde vive. Foram temas trazidos a Lisboa, numa conferência que reuniu académicos norte-americanos, ingleses, franceses, portugueses, espanhóis. À porta fechada, com algum tempo de discussão pública, estiveram na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) no final do ano passado. Não houve conclusões. Não era esse o objectivo. Mas falou-se, entre muitos temas, da necessidade de uma “pausa de emergência”, como a definiu um dia Walter Benjamin, o silêncio para a contemplação, num tempo de total acesso à informação. 

José Gil não esteve lá. Estiveram Pacheco Pereira e Maria Carrilho, numa contextualização do que foi ser intelectual durante o Estado Novo, perante a censura e um poder que limitava pensamento e movimento. A “plateia”, constituída sobretudo por académicos estrangeiros, ouviu. Gil olha agora, aqui, o presente, depois de uma avaliação global. “O nosso espaço político não funciona. Está assente no que chamo ‘silêncio’ e que não tem nada que ver com o silêncio necessário ao pensamento. Há um silêncio enterrado e recalcado do que não se pode dizer e que cria o politicamente correcto ou a possibilidade de dizer tudo dentro de limites que não se vêem. Uma das características tradicionais do que se chamava ‘intelectual’ era abanar os conformismos e ir contra o bom senso, aquilo em que se acredita, os clichés, a mesmice. Por um lado, isso explica que haja ainda intelectuais do primeiro tipo de que fala Foucault, os que anunciam verdades universais, em contraponto aos que vieram a ser os do saber especializado. E esses arautos existem porque isso está no espaço público e de mediatização, no espaço do jornalismo. Tudo isso fundamenta o discurso hegemónico, a nossa incapacidade de expressão, de criação de expressão, de relação à verdade. É preciso uma transformação no sentido quase revolucionário, capaz de criar uma nova rede de espaço público”, defende, num discurso entre a ironia e a descrença para satirizar um momento que António Pinto Ribeiro define como de “resistência”. Por sua vez, Pinto Ribeiro diz que “já houve épocas, e tenho um pouco inveja disso, em que os intelectuais se permitiam ser portadores de um princípio de potência, de energia. Os sofistas, e os intelectuais do século XVIII, as vanguardas, até muitos intelectuais da década de 60 tinham em si a possibilidade de activar o princípio dessa potência. Hoje vivemos uma época menos interessante, mas é para isso que estamos mais condicionados: a do princípio da resistência e não a de uma nova energia.”

Num discurso que fez na Fundação Gulbenkian em Outubro de 2013, o filósofo alemão Jürgen Habermas (n. 1929) centrou-se nesse foco. Pinto Ribeiro chama-lhe um ‘discurso de resistência’, quando Habermas falou do papel do intelectual como figura de futuro. Ou seja, o futuro precisa dos intelectuais. Gil e Maria Filomena Molder mostram-se mais cépticos. Do lapidar “o intelectual não tem nada a fazer na crise actual” de Gil, Molder diagnostica uma “tristeza” que dificilmente poderá gerar modos de compreensão, consequência de “um autismo social, uma depressão profunda”. “A paisagem está desfigurada, uma sala de aula onde se perdeu o amor pelo estudo, por muita gritaria que lá haja, não pode conter alegria”, diz, num discurso cheio de inconformismo: “Acho que isto é o contrário do que Nietzsche chamava o tornar-se livre.” Ou, como Delfim Sardo chama aqui a atenção, o sentido crítico como condição de pensar. Para isso, é necessário estar desadaptado, distanciado. “O filósofo tem de estar mais do que ligeiramente desadaptado.” Logo, o filósofo deve evitar a proximidade com o poder? A isto há quase unanimismo na resposta: deve.

Mas sempre esteve por perto. Desde os gregos, desde a idade clássica onde cada tirano era sustentado pelo seu ou seus pensadores. “Os intelectuais erram, já erraram muitas vezes, mas faz parte”, diz Rui Ramos. “Havia uma frase muito representativa do que era isso e que está ligada a uma característica difícil de definir, o carisma, que é integrante de um intelectual: dizia-se que era melhor errar com Sartre do que estar certo com Aron [Raymond Aron, 1905-1983, intelectual de direita, ao contrário de Sartre, autor do livro O Ópio dos Intelectuais, uma reflexão sobre o poder].” Os erros de Sartre, de Foucault, o apoio à revolução islâmica do ayatollah Khomeini, em 1979, ou o anti-semitismo de Céline são lembrados também por Pedro Mexia e António Pinho Vargas. “A ideia é errar melhor”, afirma Delfim Sardo. “Para pensar, temos de nos distanciar”, insiste Maria Filomena Molder. Estar perto do poder é não conseguir olhá-lo dessa forma. Não é impossível a relação entre pensador e poder. Mas é complicada a partir do momento em que comece a toldar o espírito crítico.”  

Depois do francês, o tudólogo?

A expressão “intelectual público”, nascida na cultura norte-americana no final do século passado, sucede à do intelectual francês, criada no final do século XIX e em vigor duramente grande parte do século XX. “Significa a moldagem do nosso espaço público a padrões ingleses, mas sobretudo americanos”, explica Rui Ramos. “Não é uma americanização apenas de conteúdos mas na estrutura do debate. A ligação dos professores universitários às políticas públicas criou este espaço.” Controversa, a expressão tem sido alvo de muitas interpretações e não tem faltado quem a considere em declínio, como também os que defendem existir uma nova vitalidade a que não é alheia a procura de respostas para uma crise do Ocidente onde a economia parece ter falhado na sua pretensa quase-exactidão. “O termo ‘intelectual público’ por vezes atinge-me como a expressão ‘comida biológica’”, escrevia o jornalista, escritor e crítico literário Christopher Hitchens (1949-2011) nas páginas da revista Prospect, em 2008. Acrescentava que “é tão absurdo conceber um alimento não biológico como um intelectual cuja especialização seja privada”. 

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Hitchens tocava então na polémica, na necessidade de encontrar uma expressão que distinguisse o intelectual que publicamente manifesta o seu “saber” do opinion maker. “O que vemos muito agora são pessoas que sabendo muito numa área intervêm sobre outras. É uma espécie de abuso ou desvio de capital intelectual”, salienta Pedro Mexia, para justificar a sua desconfiança em relação ao termo. “Tenho uma noção bastante exigente e bastante tradicional do que é um intelectual”, continua. “Não basta ser culto ou letrado. Chama-se intelectual a muita gente sem pensamento próprio. Além disso, parece-me que a definição do intelectual que nasceu do Zola é a de uma pessoa que usa o seu capital numa determinada área para se pronunciar sobre outras. Hoje não há espaço para Zolas. Mas acha-se que sim e abusa-se e, por exemplo, pede-se a um romancista para comentar o Orçamento do Estado, sem ter noção de que ele pode dar a sua opinião, mas ela não vem sustentada num saber dado pela sua competência maior, que é a literatura. Estou à vontade para falar disso. Não confundo o que escrevo sobre livros com a minha participação no Governo Sombra. Não é que não leve a sério o programa, mas os livros são parte diária da minha vida desde que sei ler e ao fim de alguns anos uma pessoa adquire algum saber. O Governo Sombra tem um tom que permite recorrer à graçola quando não é possível dizer mais nada e deixa-se cair o tema, não se fala mais disso. E quando se fala de economia ou finanças evito pronunciar-me. Recorro à piada se puder, porque faz sentido. Não me sinto um tudólogo.”

A expressão “tudólogo” é usada com ironia, mas contém muita da crítica subjacente a quem tem a pretensão de encerrar um saber universal. “Essa palavra representa a degradação da ideia de intelectual enquanto aquele que sabe tudo”, refere Rui Ramos. “Surge num momento em que o saber se tornou especializado e é sintoma do desprezo por quem vem falar da cátedra dos outros e revela o problema do intelectual público, a usura da sua credibilidade.” Já não há Hemingways, continua o historiador, usando o escritor como metáfora para construir uma imagem romântica do aventureiro, o que pensava na mesa de café, o viajante, o que percorria a rua. “De repente, para se ser intelectual, é como se fosse preciso ser-se professor universitário. Caem-se em extremos”, volta Rui Ramos. É a reacção sem se perceber, por outro lado, como diz agora Pinho Vargas, que “o utilitarismo tomou conta da universidade”, no sentido em que ela é pensada “como uma agência de empregos em áreas como a economia e as finanças”. Estamos à procura do equilíbrio, dizem, todos, numa época também marcada pela ideia de que todos podemos ser intelectuais. “O intelectual não tem de ser herdeiro da academia. É uma ideia interessante”, diz Pinto Ribeiro. Pode vir da música, das artes plásticas, do teatro ou da dança, em que a partir de um determinado campo de trabalho avança para uma intervenção. “É válido desde que a argumentação seja capaz de intervir no espaço público, atingindo públicos mais vastos”, continua. Um nome: “António Pinho Vargas, de uma solidez impressionante no seu saber.”

Não é um tudólogo, mas sabe falar de política, sociologia, estética, além da música, a sua área. Nesta conversa, não sabe do elogio de Pinto Ribeiro. “Quando tomo posições públicas, faço-o com base na minha ideia do que é o mundo e no meu conhecimento do meio musical. Como ‘artista’, sei que sou um alvo, ou fui, do poder ou dos candidatos ao poder, os que povoam as televisões, o espaço de opinião. Os candidatos convidam artistas para as suas listas de apoio como se esse apoio os legitimasse. Abusou-se tanto disso que esse abuso se auto-anulou, se tornou irrelevante.” Sabem-no de esquerda. “Eduquei-me com o Maio de 68, o 25 de Abril, foi com isso que comecei a questionar dogmas”, ou seja, ao que se chama “as unidades recebidas”. Faz isso em textos que publica, como no espaço virtual. Usa o Facebook. “É um meio legítimo, apesar de ter defeitos. Temos de apurar também aí as boas maneiras.”  

José Gil preserva-se disso e de quase toda a exposição. Tenta. “Já tive as minhas experiências”, confessa. O livro Portugal Hoje, o Medo de Existir tornou-o reconhecido fora da Filosofia, ao ponto de um director de informação de um canal televisivo o ter convidado para comentador sem nunca ter lido o texto. Os olhos brilham a contar a “ignorância e o deslumbre”. Ser público hoje é ignorar muitas vezes, segundo Gil, o que se passa em relação ao saber hoje, e cita mais uma vez Michel Foucault para explicar: estamos na especialização e o fim da tal verdade universal, ou seja, estamos no tempo do “intelectual específico”. “O intelectual específico já não enuncia verdades universais em nome de algo. O que ele faz é analisar, pensar as relações entre uma ou determinadas competências — a sua especificidade — com as condições gerais de produção e circulação de verdade.” Cada vez mais público, cada vez mais exposto num espaço em grande transformação, o intelectual passa a ser autoridade num nicho, ainda que, e agora voltamos a Hitchens, possa fazer da sua vida um debate de ideias, ou seja, que haja na mesma pessoa pensamento e acção, condição que faz dela intelectual público.

“A palavra ‘intelectual’ é um bocadinho irritante por causa desse fechamento no intelecto”, afirma Maria Filomena Molder a meio de uma longa conversa para a qual convocou os clássicos gregos e chamou Dante, no século XIII-XIV, como o primeiro a separar o sagrado do poder secular, ou laico, uma distinção que “muitos dos que têm funções de Estado actualmente parecem não ter percebido”. Por exemplo? “Quando a senhora presidente da Assembleia da República afirma que a função dos deputados é sagrada, depois de ter havido protestos na bancada da assistência durante um plenário.” E, em defesa da sua reserva em relação ao termo “intelectual”, Molder chama à discussão o italiano Guido Ceronetti (n. 1927), tradutor de textos do Antigo Testamento, que tem escrito sobre o uso excessivo da palavra num momento “de grande empobrecimento da vida espiritual do ser humano”. “Quase nunca uso essa palavra”, acrescenta. “Prefiro dizer ‘filósofo’. Mas não consigo identificar intelectual com filósofo. A restrição ao intelecto pode ser perigosa porque a inteligência que está afastada da compreensão íntima, da compreensão que exige emoção, o juízo sentimental, é um intelecto perigosíssimo. Goya fez uma série de desenhos que têm o título O Sono da Razão Produz Monstros. Quando a razão é como aquela a que estamos a assistir hoje, que é a da programação, a criação de regras e projectos e decisões que não têm em conta, por exemplo, o acaso.” 

Os desenhos são de finais do século XVIII. Em 1824 Beethoven completava a Nona Sinfonia. A palavra “intelectual” não tinha sido criada, mas a arte já ditava enunciados universais. O saber sensitivo. “A importância da Nona Sinfonia não teria sido a mesma sem o Hino à Alegria. São as palavras musicais que até aí não eram habituais nas sinfonias e que Beethoven decide incluir que levam a que, mais tarde, aquela peça fosse um ícone da civilização ocidental. Pelos valores de liberdade e fraternidade da Revolução Francesa e uma espécie de olhar positivo para o futuro”, sublinha António Pinho Vargas. A peça está classificada como Património da Humanidade pela UNESCO. “A música dirige-se à percepção sensível, acontece e atinge o ser humano através do sentido da audição e a zona da significação é de extrema ambiguidade”, acrescenta o compositor, referindo as ligações da música ao pensamento, os inúmeros mitos em que se sustenta e que, em muitos escritos, Pinho Vargas tenta desmontar. “Os mitos circulam e estão enraizados”. Temos sempre de os interrogar. “Não sei o que é isso, intelectual. Sei que é preciso interrogar os lugares-comuns e é preciso ter uma história de vida para que o que se diz possa ter um eco qualquer”, conclui. 

“O intelectual para mim, desde que o aprendi com Jacques Le Goff [1924-2014, historiador, autor entre outros de Os Intelectuais na Idade Média], tem que ver com a formação universitária, com a escola, com a tradição e a discussão sobre a tradição. Tem que ver com argumentação, com disputa, com a ideia de [que da] discussão faz-se luz. Tem que ver com sentido crítico. E o contemplador, ou filósofo, para mim está num plano em que todos estes elementos podem entrar”, refere, por sua vez Maria Filomena Molder, sem citar nomes, indo antes a referências que ajudam a contextualizar o tema. Casos de Aristóteles, Platão, ou o mais recente Michel de Certeau (1925-1986), autor de L’Invention du Quotidien, onde mostra que o que chamamos “as grandes massas ou multidões”, “objecto de grande desprezo ou fascínio”, são compostas por pessoas votadas a ser criativas, mais um elemento para juntar a uma imensa discussão.

“Porque é que, mais ou menos de repente, tivemos necessidade de acrescentar público ao intelectual?”, interroga-se Rui Ramos. “Porque que é que intelectual não chegava?”, volta a questionar, antes de arriscar uma resposta: “Mais uma vez, julgo entender, para o diferenciar do opinion maker numa sociedade dominada pela televisão e, mais recentemente, pela Internet.” A expressão vem do inglês public intellectual, a tal expressão que divide pensadores (outra palavra quase sinónimo). Em 2002, o jurista norte-americano Richard Posner (n. 1939) publicava Public Intellectauls: A Study of Decline. Reeditado no final de 2013 com um prefácio actualizado, o livro é uma espécie de lamento acerca da especialização, fruto de uma academização que estará a “matar” o activismo que pode ditar a tal verdade universal capaz de desencadear mudanças globais. Não há declínio, mas apenas uma readaptação ao espaço público, vieram dizer, por exemplo os chamados “intelectuais de Nova Iorque”, movimento associado à esquerda americana, que começou a surgir na segunda metade do século XX (com nomes como Tom Wolfe ou Susan Sontag), que negam que o intelectual tenha perdido importância no espaço público norte-americano. O debate mantém-se actual e contaminou a Europa, confrontada com o fim do intelectual à imagem francesa que nasceu com Émile Zola no final do século XIX e o caso Dreyfus.

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O tempo da velocidade

Em 1898, o escritor publicava um manifesto a favor de um oficial do Exército francês, de origem judaica, Alfred Dreyfus, condenado por alta traição ao Estado em 1894, num processo conduzido de forma suspeita e que ficaria conhecido pelos seus contornos xenófobos. No documento J’Accuse, publicado no jornal literário L’Aurore, Zola expunha a sua indignação face ao que considerava ser um caso de desrespeito pela justiça e pela liberdade, valores na base do Estado francês, e de confusão entre poderes: Igreja e Estado. O artigo iniciou um enorme debate e conseguiu que Dreyfus fosse a um segundo julgamento, onde ficou provada a sua inocência. O termo “intelectual” passou a ser usado para designar quem, como Zola, podia gerar acção com o seu pensamento e prolongou-se e exportou-se ao longo do século XX. “O que está em causa é o velho intelectual”, continua Rui Ramos. “Acrescentamos ‘público’ aspirando reatar um relação com o público que talvez se tenha perdido com um discurso mais fechado na academia, com a especialização”, nota ainda o historiador, chamando a atenção para uma alteração de circunstâncias. “O discurso aspira a uma divulgação, mas com as marcas do hermetismo e a citação surge como muleta. É preciso ter a marca da sabedoria, uma tentativa defensiva, a de se rodear por uma muralha de sabedoria que nos distinga dos outros, num espaço público em que o intelectual está em pé de igualdade com os outros. Passamos de um espaço público reduzido, caracterizado pela escassez, por uma grande selectividade de quem escrevia no público, para a Internet onde toda a gente pode escrever.”

Torna-se impossível pensar o intelectual fora do espaço onde actua e esse espaço é marcado por um tempo onde tudo parece ir em sentido contrário ao que todos reclamam como o território do pensador, fique ele encerrado no seu saber ou siga o impulso de o divulgar, se torne o tal homem público. O tempo da Internet, do imediatismo, do acesso facilitado às fontes, do se poder quase tudo, mas o tempo ser limitado. Onde cabe o intelectual? “O intelectual é válido ao nível da argumentação. Conseguir isso pressupõe uma reflexão e um tempo que estão para lá desta velocidade de consumo de informação. Isto exige mais tempo do que aquele para o qual o nosso quotidiano está preparado. Neste momento, existe um desajuste entre o tempo necessário à crítica para a produção de um argumento e a sua reflexão, e depois a sua escuta ou a sua leitura”, salienta António Pinto Ribeiro, enquanto destaca a dificuldade de traçar uma fronteira entre espaço público e espaço privado. “O intelectual intervinha basicamente no espaço público. Hoje não existe espaço privado, dado que o espaço virtual acabou por ocupar tudo isso.” Exemplo? O que se passa em muitas redes sociais, com o Facebook como protagonista. “Há a questão do pudor. Até que ponto o intelectual se expõe? Ou até que ponto está a ser intrusivo em relação ao espaço privado das pessoas?” Acrescente-se outra: a da eficácia da mensagem passada nesse contexto imediato. Seja no Facebook ou, mais imediata ainda, a que se publica no Twitter. “Essa mensagem é uma tentativa de sobrevivência. É para dizer ‘eu estou aqui’, mas o estar ali não quer dizer mais do que essa coisa tão limitada que é ‘eu estou aqui a sobreviver’. Não é possível argumentar ali, nas frases do Twitter. É impensável”, conclui Pinto Ribeiro. E se não há argumentação não há exercício de pensamento.

Estar alerta e comprometido com o saber é uma premissa que distingue quem fala do que sabe. Essa passagem, a exposição do argumento e a discussão são feitas em circuito cada vez mais fechado, ao contrário do circuito aberto em que geralmente fala o opinion maker. “O que se quer e o que se está a constituir, fruto da transformação da sociabilidade, é a formação de grupos clandestinos, e portanto de um espaço público clandestino. Acontece já muito em Portugal, pessoas que formam um pequeno grupo e dizem: vamos lá expor para um pequeno grupo. São os nichos.” Os ambientalistas são um exemplo. “Muitos não terão essa consciência, de serem novos intelectuais. O planeta, nós, estamos no seu discurso, dependentes”, contextualiza José Gil, lançando outra pergunta a que dá resposta, da tremenda importância deste espaço subterrâneo: “A abertura do espaço público mediático diminuiu muitíssimo as condições de criação e de criatividade. O silêncio, a pausa silenciosa, a não visibilidade que tenho de ter para que qualquer coisa amadureça em mim não é possível no espaço mediático. É impossível. O espaço mediático é um horror. Está sempre a exigir. Nesse espaço subterrâneo — não é uma margem —, há intelectuais porque há tempo. Há uma relação, que não é exclusiva, entre grupos como o movimento dos indignados, mas reduzir o subterrâneo a isso é limitá-lo muito.”

Motivações e referências

Eles existem. Chamem-se pensadores, filósofos, artistas, escritores. Dentro das várias definições possíveis, surgem nomes que influenciam. Os leitores da Prospect, revista que tem dedicado muitas páginas ao assunto, elegem desde 2004 uma lista com os pensadores mais influentes a nível mundial. A de 2014 é liderada por um economista, o indiano Amartya Sen (n.1933), professor em Harvard, Nobel em 1998 com a teoria da chamada decisão e welfare state, o Estado promotor e protector. O segundo e terceiro voltam a ser indianos, o governador do Banco da Índia, Raghuram Rajan (n.1963), e a escritora e activista social, com muitos ensaios sobre os direitos das mulheres, em defesa do ambiente e denunciando a pobreza, Arundhati Roy (n. 1961), vencedora do Booker Prize em 1997 com o seu romance de estreia O Deus das Pequenas Coisas. O quarto desta lista de 50 nomes, a maioria economistas e filósofos, é o economista chinês Mao Yushi, de 85 anos, e o quinto, o Papa Francisco. A lista vale o que vale enquanto indicador das preocupações do globo. Noam Chomsky, Umberto Eco ou Richard Dawkins foram nomes muito presentes nos últimos anos, mas são os economistas e asiáticos a liderar a atenção dos cerca de dez mil leitores votantes. Ainda o efeito do crash de 2008 a par com gente que pensa a ética e a escrita como modos de reagir a um “tempo de dúvida”, como lhe chama o português Eduardo Lourenço. Uma nota: na última edição, os organizadores abandonaram a expressão “intelectuais públicos” e substituíram-na por “pensadores mundiais”. O vocabulário reflecte a polémica e o descrédito que o termo “intelectual” tem suscitado.

“Celebridade” tem sido uma palavra associada. Não se fala de nomes, mais uma vez. Dos que são chamados a falar porque são reconhecidos, têm uma imagem, e a palavra passa a segundo plano. Passa-se a outra dimensão ou etapa. A dos profissionais da palavra porque têm uma imagem e são colocados entre os que pensam. “São quase vedetas pop”, refere António Pinho Vargas, depois de dizer os nomes de Al Gore, Bill Clinton ou, antes deles, Gorbatchov. Mas há também filósofos. Exemplo? Slavoj Zizeck, “um radical, homem engraçado, que diz piadas. Tem um pensamento profundo, discutível. Todos eles fazem tournées”. É o discurso-espectáculo que resulta do vazio do discurso político mais clássico. O vácuo dos discursos políticos deixa-nos numa espécie de incompreensão do mundo e isso transcende as fronteiras de Portugal”, insiste Pinho Vargas. “No passado, ninguém aspirava chegar ao seu intelectual de referência. Ele era visto de longe”, diz Rui Ramos. “Agora tenta-se encontrar uma relação de diálogo, tratar pelo primeiro nome. Isso acontece no espaço público dessacralizado. As pessoas querem a superioridade mas não estão disponíveis para estar em segundo plano. O aspirante a intelectual é confrontado com duas coisas: tem a credibilidade máxima quando não é conhecido, quando só se dedica a algo muito especializado, mas que a partir do momento em que é conhecido baixa de divisão, degrada-se, perde a graça, gasta-se por aparecer demasiadas vezes. É paradoxal: para fazer o papel do intelectual, preciso da credibilidade que vou gastar sendo intelectual. É a armadilha.”  

Falta-lhe dimensão crítica, segundo Delfim Sardo. Tem faltado e está a faltar e é indispensável à condição de intelectual, aquele que põe em causa, o que “problematiza”. “É preciso criar espaço para o exercício da diferença”, defende. “Sair apenas do comentário, conseguir mais. Na Internet, fora o universo dos blogues, de onde tem vindo gente interessante, é de uma imensa brevidade e o resto imita essa brevidade banal. O vocabulário do comentário, por exemplo, passou a ser curtíssimo. A síntese pode ser um excelente exercício, mas não tem de ser pobre. Com a escassez desse vocabulário, é impossível fugir ao jargão do mainstream. Os casos da política e da economia são paradigmáticos. Não existem revistas ou publicações de saber intermédio, entre o facilitismo e a coisa hermética da cátedra.” Fala em silêncio, omissões. Por exemplo, “se alguém quiser fazer a história da arte em Portugal a partir do que foi publicado nos últimos anos na imprensa, não consegue. Não sei como se irá fazer isso”, afirma ainda, enquanto faz a ponte entre arte, pensamento e quotidiano. “A arte, a produção artística, vale enquanto interpretação ou reacção a um real.” É aí que coloca Eduardo Prado Coelho: “Em Portugal, ele era um exemplo da capacidade de fazer essa ligação. Com a sua morte, ficou um vazio.”  

Continua a interrogação. Quem são, o que podem, porque continuam? “Tem de haver sempre o ponto de interrogação. Ele é o motor”, lembra Pinho Vargas que diz continuar por isso. “Estou a pensar quando estou a ponderar, a pesar, a comparar. Tento encontrar exemplificações, a tentar reunir casos para ver se se forma uma paisagem, em que se veja um bocadinho o que é o todo, porque nunca temos acesso ao todo. O que vejo neste país é que se tomam decisões sem essa perspectiva. É tudo obscuro”, refere Maria Filomena Molder. “Quem sabe, quem é dono de um saber, tem uma responsabilidade social, não é apenas o empresário que enriquece. O intelectual ou o professor, as elites pensantes, têm essa responsabilidade. Não é que seja sempre consciente, mas deve estar subentendida. Há uma espécie de preconceito quando se fala em elites. Não estou a fazer juízos sociais. Falo de quem tem acesso e faz ‘bom uso’ dele e, mais uma vez, chamo a atenção para o lado muito pouco utilitário de tudo isto. É um bem vital. Como respirar”, sustenta Esther Mucznik. “Há a nostalgia e a necessidade”, diz Rui Ramos sobre essa procura, a do pensador, do sábio que traga uma ideia que organize. “Na enorme abundância de informação, precisamos de editores, de quem, com credibilidade, organize. O luto do intelectual ou a nostalgia do intelectual é a da ordem. Saber que há ali alguém, paramentado ou não, que podemos seguir e a quem podemos pedir responsabilidades. Não é para nos submetermos necessariamente. É para nos revoltarmos.” E o que move Rui Ramos? “Uma atitude muito egoísta. O gosto. Penso no espaço de debate. Não gosto de pensar fora do espaço público. É dentro dele que me organizo.”

Há referências. Todos sabem onde ler, quem ler. Procurar. A palavra é das mais ditas nestas conversas. “Dou credibilidade a quem fala do que conhece e pode estar nos antípodas do que eu penso. Dou credibilidade a quem vejo que não mistura o seu conhecimento com as suas convicções. Sei que vão dizer que isto é um pouco de direita, mas não faz mal”, refere Pedro Mexia, que não entende o “mas” sempre que alguém lhe diz que gostou do que escreveu, mas que não concorda. “Isso não é o que nos move, essa diferença de pontos de vista? Entendo que discordem, tudo bem, mas o ‘mas’…” O eco nem sempre é concordante. É o que espicaça. “A minha motivação é a de tentar perceber o que é que ecoa em mim de uma obra específica. A minha compulsão vem sempre de uma relação com uma obra, um conjunto de obras, uma problemática que um autor estabelece, mas é sempre muito física, muito em relação ao que está perante mim. Não tenho essa compulsão didáctica”, conta Delfim Sardo, e António Pinto Ribeiro fala de algo que não lhe é controlável e tem que ver com “a dimensão inconsciente” deste tipo de intervenção. “É uma forma de partilha e vontade de racionalizar o mundo. Se não o fizermos, soçobramos no meio da desorganização global para o qual este mundo caminha.”

Não há um fim, um ponto final. Isso não se põe se o debate e a interrogação se mantiverem. “Chamo-lhe ‘impulso de vida’. Acredito que há uma força de vida e que isso implica qualquer coisa que não está estudada. Penso em Espinosa e Nietzsche, numa ética de vida. A vida quer vida. A vida deseja vida. Se se põe um obstáculo ao fluxo de vida, ela há-de arranjar maneira…”, fala José Gil. “É um caso muito sério…”, sublinha. “Depois há os desvios e possibilidade de a vida se voltar contra ela, mas isso são casos que vêm de outras forças. A não resignação faz parte da vida.” António Pinho Vargas fala em escritores. Sophia, Salman Rushdie. “Lia muito poesia e ensaio e recentemente voltei ao romance. Ler um destes autores, uma frase ou uma obra completa, pode fazer levantar-me e escrever uma frase na linguagem abstracta da música. É isso o impulso? Deve ser o mesmo do tal ‘intelectual’.”


Notícia alterada a 22 de Setembro de 2014: a sinfonia de Beethoven referida por António Pinho Vargas é a Nona e não a Quinta. Foi corrigida a data dos desenhos de Goya

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