O fracasso das reformas arde todos os anos no Verão

1 -O “comando operacional” está desenhado, uma estrutura de “direcção, comando e controlo” definida, os “teatros de operações” identificados, mais de 12 mil homens mobilizados para a “fase Charlie”, as bases logísticas geridas por 1047 homens foram devidamente estabelecidas, 41 helicópteros e 8 aviões anfíbios estão ou vão ser contratados. Uma vez mais, Portugal está preparado para a sua eterna guerra do Verão. O Governo verteu para a linguagem marcial as formas e os meios com que pretende travar o combate contra o fogo que todos os anos devasta uma parte da floresta nacional. Uma guerra, bem se sabe, dura e inglória, mas que ainda assim consegue convocar um aparato suficiente para esconder a falta de políticas de fundo para o mais importante recurso natural renovável do país.

Se há um exemplo acabado de um fracasso nacional esse exemplo está na floresta. Há décadas que ministros, economistas, ambientalistas, empresários ou silvicultores descrevem em sonantes apresentações o que o país poderia ganhar com uma fileira florestal bem gerida e bem protegida. Nos anos 90, os mais convictos falavam na descoberta de um petróleo verde que alimentaria uma cadeia industrial condenada ao sucesso pelas enormes vantagens comparativas do país. Havia, e há, cerca de um terço do território nacional apto para a florestação; a produtividade de espécies como o pinheiro bravo é especialmente elevada em algumas regiões; a singularidade do clima e dos solos era propensa ao cultivo de espécies nas quais Portugal tem não só saber silvícola como industrial, caso do sobreiro. Havia tudo mas, 30 anos depois, uma grande parte do “sonho florestal” desvaneceu-se nos incêndios e na incapacidade de Portugal planear e executar políticas de longo prazo.

O aparato militar do combate aos incêndios florestais é por isso a revelação de uma má consciência, a transposição para o papel de uma falha, o reconhecimento de que Portugal é um país incapaz de projectar o seu futuro. É mais fácil pegar em 80 milhões de euros e mobilizar bombeiros, viaturas e aviões do que definir uma estratégia que exige determinação, persistência, zelo e continuidade que demora anos a produzir resultados. Só que em vez desse trabalho discreto e silencioso, os diferentes governos foram-se entretendo em alimentar o espectáculo que no auge do Estio garante às televisões e aos jornais imagens dantescas e esforços desmesurados de bombeiros. A opção deu no que deu: apesar dos milhões gastos, não foi possível evitar a destruição de amplas e importantes franjas do património florestal nacional, com destaque para o pinheiro bravo.

A troca do imediato espectacular pelo futuro discreto e incerto tornou-se uma das matrizes da governação dos últimos 20 anos. O Estado perdeu capacidade de estudar e de reflectir e a produção de diagnósticos e de estratégias foi concessionada através de contratos generosos a privados aos quais faltava geralmente memória e experiência. O auge desse esvaziamento aconteceu neste Governo com a extinção do que restava do outrora magnífico Gabinete de Prospectiva e Planeamento, que produziu algumas das mais densas e profícuas reflexões sobre o futuro do país. Mas já antes serviços como a Direcção-geral das Florestas tinham sido vitimados pela política do efémero e do espectáculo, na qual vale mais uma promessa cheia de ar do que uma acção discreta plena de conteúdo.

Foi este culto do transitório em detrimento do permanente que tornou o Estado refém de uma geração de políticos empenhada em mudar tudo o que vinha de trás para que nada acontecesse. Políticas como a do PEDIP de Mira Amaral, logo no início da integração europeia, demoraram dez anos a dar resultados em sectores como a têxtil ou o calçado e dez anos é muito tempo para a “política J”, que para lá da ignorância e da escassa vocação para ler e estudar se preocupa em demasia em fazer muitas coisas e depressa, sabendo que toda a sua acção será varrida por quem vier a seguir. Opções como a construção de auto-estradas e outras obras públicas na geração Cavaco-Guterres-Durão-Sócrates resultam apenas de uma atitude comodista que, justamente, considera ser mais fácil pagar a empreiteiros do que fazer escolhas e realizar políticas que dispensam inaugurações. A falta de empenho reformista deste Governo, que agora, no final do mandato, se tenta dar ares de solene empenho com as mudanças em áreas como descentralização administrativa ou a Educação, é a prova acabada dessa impreparação para liderar o país numa visão a prazo.

Decisores políticos da geração de Valente de Oliveira, de Silva Peneda, de Elisa Ferreira ou de João Cravinho deixaram de fazer sentido nesta forma de desgovernar que prescinde de visões a prazo e de estratégias duradouras. Portugal caiu no delírio da dívida e no comodismo do desequilíbrio externo porque, uma vez mais, quem governava estava mais disposto a ceder ao facilitismo do que à análise consciente dos problemas. Se até 1995 ainda se podia acreditar um vislumbre de políticas agrícolas, de políticas industriais e seguramente em visões para o desenvolvimento das diferentes regiões do país, com Durão Barroso e José Sócrates entrámos num vazio de pensamento estratégico que nos persegue até aos dias de hoje.

Os esforços gigantescos que todos os anos se fazem para combater os fogos são o sinal desses erros e das omissões de sucessivos governos. Anos depois de identificados os problemas e de discutidas e aprovadas soluções, a floresta portuguesa continua a ser uma terra de ninguém, abandonada e sujeita ao fogo. Há amplas manchas florestais cujos proprietários são desconhecidos por falta de um cadastro; há a impunidade instituída para os que não se preocupam em limpar os seus espaços; há um absurdo desordenamento que tornou Portugal num país de eucaliptos; e há, claro, um pasto garantido para as chamas que nem a abnegação dos bombeiros nem o aparato militarizado da fase Charlie conseguirá travar.

2 – Sampaio da Nóvoa foi ao último Congresso do PS fazer o papel de estrela e aí anunciou estar pronto para a política por não querer “ver a Pátria parada à beira de um rio triste”. Se o ex-reitor tivesse invertido os termos da equação, dava o mesmo, porque na visão que partilha com Mário Soares, com Henrique Neto e com muitas figuras gradas do PS, Portugal é hoje um país triste à beira de um rio parado. Ainda assim, essa frase diz muito sobre um certo fundo messiânico que contagia as esperanças de grande parte da esquerda.

Como em outros grandes momentos da História, Sampaio da Nóvoa (ou Henrique Neto) anunciam combates em Portugal e na Europa em favor de um tempo novo, sem tristeza nem águas estagnadas. Essa mensagem é potencialmente positiva, embora nem sempre o consiga ser autêntica ou mobilizadora. Depende da forma como é pronunciada e, ainda mais, de quem a pronuncia. Um homem como Sampaio da Nóvoa,  simpático, de barba grisalha, um pouco sem jeito, de cravo de Abril na mão talvez seja capaz de anunciar a boa nova sem cair no ridículo. Um homem engravatado, com longo passado político e partidário, moldado pelo marketing e pela manha dos jogos de poder, jamais o conseguiria.

Foi isso que António Costa percebeu. Depois de Henrique Neto ter entrado na corrida, o líder do PS deu conta que contra uma carta fora do baralho não podia jogar um rei de paus ou um valete de copas. Tinha de usar outros trunfos. Sampaio da Nóvoa acaba por ser para ele o que menos riscos coloca. Quanto mais não seja, ele é-lhe indefectível, para lá do mérito de conseguir calar a sempre ruidosa bancada soarista.

Sugerir correcção
Comentar