O fim dos homens do aço

Chegaram a ser dezenas, restam dois. Os maçariqueiros cortavam o aço e erguiam navios encomendados não importava por quem: EUA, ex-URSS, Armada Portuguesa. Só querem que os “deixem criar navios”.

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Hermenegildo Silva e Jorge Miranda são os dois últimos maçariqueiros nos estaleiros de Viana Miguel Manso
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Sem construção naval, não há corte de aço Paulo Pimenta

São dois no meio de 609. Hermenegildo Silva e Jorge Miranda são os dois últimos cortadores de aço qualificados do único construtor naval oceânico do país e com fim anunciado para os próximos dias. Estes operários, que no passado se chamavam maçariqueiros, são também os últimos dois neste ofício em Portugal.

Nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) aprenderam, enriqueceram conhecimento e tornaram-se formadores de uma área que chegou a empregar várias dezenas de homens. Hoje restam apenas Hermenegildo Silva e Jorge Miranda e três ajudantes. O resto aposentou-se, faleceu.

Num estaleiro, um grande navio não se constrói sem eles. Sem construção naval, não há corte de aço. Hermenegildo e Jorge trabalham no “berço”. “Os navios nascem das nossas mãos”, explicam entre orgulho e tristeza.

Nas memórias dos dois homens, há várias vezes para uma “última vez”. A última vez que trabalharam no corte do aço foi para construir os dois navios de patrulha oceânica encomendados pela Marinha. A última destas embarcações fez-se à água no passado dia 16 de Dezembro, em Viana do Castelo, e viajou pela costa até Lisboa, para atracar na base do Alfeite.

Ainda fizeram algumas reparações, com algum trabalho de aço, mas dizem que as duas máquinas de corte há muito que estão paradas. A última a ser adquirida está funcional mas a outra, mais antiga, precisava ela própria de reparação. Hermenegildo estima que o conserto possa oscilar entre os 20 mil a 100 mil euros, dependendo do que se queira reparar. Cada uma das máquinas pode valer no mercado cerca de um milhão de euros.

“A máquina de corte de plasma submerso não está muito funcional porque além de corte ela escreve na chapa. A impressora já não escreve porque está avariada. O software é caro e o estaleiro não quis investir. Também era preciso substituir peças. Como não são substituídas, a máquina avaria com mais frequência”, explica Hermenegildo, que é também o mais antigo cortador de aço ainda em funções nos estaleiros.

O último trabalho de reparação naval de que falam foi feito em Fevereiro deste ano: foi ao casco do Gil Eannes, o velho navio-hospital, construído pelos próprios estaleiros em 1955 para dar apoio à frota bacalhoeira na Terra Nova. Foi também com a ajuda dos ENVC, num processo liderado pela Câmara Municipal, que a embarcação foi entretanto resgatada da sucata. Desde 1998, o navio é um museu, atracado na doca comercial da cidade, com mais de 600 mil visitas até agora.

Trinta e um dos 46 anos de vida de Hermenegildo foram passados ao serviço dos ENVC. Jorge passou lá metade dos seus 36 anos. Ambos temem que a extinção da empresa mate a arte que o resto do país já perdeu – tinha-a a antiga Lisnave - e que o saber não chegue sequer à geração seguinte.

“Acho que não somos assim tão valorizados”, atira Hermenegildo, que começou a trabalhar nos estaleiros com apenas 15 anos, onde a mãe já trabalhava, na área de limpeza. Foi a solução encontrada pela família para enfrentar as dificuldades da vida, agravadas pela perda do pai. Não eram esses os seus planos, mas os anos encarregaram-se de o surpreender, porque confessa que acabou por gostar do que faz.

“Era preciso ajudar a pagar as contas da casa. Quando aqui entrei, pensei que seria passageiro porque os meus voos iam mais alto. Aqui fiquei e até ajudei a formar uma irmã em Economia”, desabafa.

O experiente maçariqueiro foi depois operador de máquinas pantógrafos, equipamento que reproduzia o molde da embarcação no aço e chegou a operador de máquinas de controle numérico computorizado. Os nomes das funções foram mudando à medida que a tecnologia evoluiu e permitiu aos ENVC manterem-se anos na vanguarda da construção de navios.

Quando começou a trabalhar já existiam máquinas mais modernas que os maçaricos, mas ainda se recorda de ter cortado navios com esse sistema. Um trabalho minucioso, rigoroso, de mestre-alfaiate.

“Faziam-se moldes de madeira que se colocavam em cima da chapa. Depois riscava-se à volta do molde e a seguir com maçaricos fazia-se o corte da chapa. Eram indivíduos muito bons a fazer esse trabalho. Tinham uma mão certa que não tremia”, recorda.

Depois vieram as máquinas que reproduziam o molde feito pelos desenhadores e através de fotocélulas “passavam por cima do risco e cortavam o aço”. Nos últimos anos, tudo passou a ser informatizado.

“O próprio sistema de corte é totalmente diferente. Com a máquina de corte de plasma submerso, as chapas são colocadas debaixo de água e o plasma, um sistema de corte de descarga eléctrica, de ozono e água, faz o trabalho muito mais rápido, limpo e sem barulho”.

“O equipamento mais evoluído é mesmo o corte a laser, mas isso é tecnologia muito cara”, explica.

Os três ajudantes de Hermenegildo e Jorge trabalham na montagem de perfis mas, com alguma formação que receberam, podem assumir as duas grandes máquinas de corte. Tudo o que “Gildo”, como é conhecido entre os colegas, aprendeu já transmitiu a muitos colegas. Jorge foi um deles. Quando entrou na empresa em 1995, começou como soldador mas decidiu apostar no corte a pensar num futuro mais promissor.

“Pensei que podia ser uma coisa para o futuro. Na soldadura há muita gente no país e fora do país, mas para o corte há muito pouca gente”, explicou.

“Afinal”, desabafou, “o nosso Governo não nos dá valor. Temos muito bons profissionais nesta empresa que se vão perder. Acredito que a nível europeu ou mesmo mundialmente há poucas pessoas a trabalhar como nós”.

Ao longo de 69 anos de actividade, os ENVC construíram mais de 220 navios. Desde batelões, rebocadores, ferryboats, navios de pesca, de carga a granel e porta-contentores, navios tanques, transportadores de produtos químicos, petroleiros e metaneiros, cimenteiros e vasos de guerra.

Hermenegildo não se lembra do primeiro navio que cortou mas na memória tem ainda bem presente o trabalho que deu o “Aurora”, a construção número 206 encomendada pelos EUA. A embarcação de transporte de produtos químicos entregue em 2000 foi um desafio na época.“Era monstruoso e isso ficou-me gravado”. Recordou ainda, antes do “Aurora”, na segunda metade da década de 70 e nos anos 80, algumas grandes séries produzidas para a ex-URSS.

Bem mais recentes, os dois navios de patrulha oceânica construídos para a Marinha portuguesa colocaram toda a empresa à prova pela complexidade, mas o desafio foi superado.“São projectos muito exigentes mas nós estamos feitos para construir navios, sejam difíceis ou fáceis. Adaptamo-nos bem a novos desafios. Só quero que nos deixem criar navios que é uma coisa que não nos estão a deixar fazer”, rematou Jorge.

Hermenegildo e Jorge têm muitas perguntas para as quais não encontram resposta. Irão integrar os quadros do novo dono dos estaleiros? Com que condições? Será trabalho precário ou receberão salários que dignificam a sua especialidade? Terão a quem transmitir a arte?

“Sou novo para a reforma e velho para arranjar emprego. Não sei se a nova empresa [a West Sea, a nova empresa constituída pelo vencedor do concurso da subconcessão dos terrenos, infra-estruturas e equipamentos dos ENVC, que pertence ao grupo português Martifer] está interessada em mim. Não sei se já tem trabalhadores qualificados nesta área. E depois é preciso ver se as condições são aceitáveis”, afirma Hermenegildo.

Jorge não descarta a possibilidade de emigrar embora não seja solução que lhe agrade. Já pensou na Galiza mas não conhece bem as necessidades da construção naval no país vizinho. Os estaleiros mais próximos ficam em Vigo e Ferrol, com participação pública e privada. Não sabe se lá terá uma oportunidade. “Não sei se eles têm este tipo de máquinas de corte. Nesta altura não sei o que irei fazer, está tudo muito confuso”, remata.

Em contraciclo, a construção naval galega vai de vento em popa. A uma centena de quilómetros de Viana do Castelo, em Vigo, os estaleiros de Barreras têm carteira de encomendas garantida para os próximos anos. A imprensa espanhola noticiou recentemente a formalização de contratos com a empresa petrolífera mexicana Pemex no valor de 300 milhões de euros.

Além de cinco navios já garantidos, outros três estão a ser negociados a que se junta o contrato para a construção de um hotel flutuante, praticamente fechado. De acordo com a imprensa espanhola, que cita fontes da Xunta da Galícia, poderão ser anunciados outros negócios com o México, por estes dias. A procura de encomendas para os estaleiros galegos tem uma aposta do governo regional que se tem desdobrado em contactos dentro e fora do país.

Em Viana do Castelo aWest Sea deverá assumir a subconcessão dos estaleiros em Janeiro. Promete recrutar 400 dos actuais 609 trabalhadores, mas tudo dependerá da carteira de encomendas.

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