Memórias de Família

Memórias de Família

Ir à guerra e ver o mundo: uma herança para a família

"Este senhor tão bem posto, de cigarro pendurado na mão esquerda, é o meu bisavô na sua farda militar durante a Primeira Grande Guerra. Neste ano de centenário, lembrei-me desta foto e de como, de alguma forma, a minha família é herdeira do facto de este homem - António Tomaz da Conceição, nascido em 1893 - ter estado na guerra, na Flandres.

O meu bisavô é daquelas figuras que ganham uma espécie de estatuto mítico nas famílias. Daqueles de quem se contam histórias. Eu já não me lembro dele - creio que morreu mais ou menos quando nasci, em 1973.

É verdade que ele já não era bem como os homens da sua geração e do seu lugar, ­ a Barrada, uma aldeia perto de Abrantes, onde só havia agricultores às voltas com uma terra seca cheia de calhaus rolados e onde os dotes dos noivos se mediam pelo número de oliveiras que cada família tinha. O meu bisavô tinha um padrinho militar que o levou para a cidade, onde fez a 4ª classe. Era dos poucos homens na aldeia que sabia ler. Tenho ideia de me contarem que até tinha um livro - uma enciclopédia, creio, que trouxe da Flandres.

Teve a sorte de não ir para as trincheiras: trabalhava na cozinha. Durante o seu tempo de guerra, teve por companhia uma cabrinha de estimação (se acabou na panela, não sabemos). Escrevia as cartas para os soldados enviarem à família - cartas que não lhe eram ditadas, mas que ele inventava, e que lia depois para os soldados aprovarem. Contava, a chorar, como as francesas beijavam e abraçavam os soldados e as mulas que entravam em Paris.

Voltou da guerra inteiro e sem mazelas. A filha mais velha, a minha avó, nasceu em 1923. Contra tudo o que seria de esperar num homem daquele meio, numa altura em que os pais não queriam que as filhas (mulheres) estudassem "porque era só para escreverem cartas aos namorados que os pais não podiam ler", o meu bisavô pôs as três filhas na escola até à 4ª classe. Mais do que isso: quis que todas aprendessem uma profissão. Dentro das opções da época, a minha avó tornou-se costureira; a filha do meio aprendeu tecelagem; e a mais nova ficou de aprender o ofício com uma das outras duas.

Segundo comentam alguns netos, o meu bisavô quis isto para as filhas não só porque era, por natureza, um homem inteligente, curioso e com visão, mas porque tinha visto e vivido outras coisas, que cá as pessoas não conheciam, na Flandres. Imagino que tivesse visto indústrias, mulheres e crianças a trabalhar fora de casa, tudo o que aqui, numa aldeia do interior, não existia. Suponho que a este primeiro salto na formação e no trabalho se deve depois o facto de os meus avós terem feito tudo para que os filhos estudassem na universidade - não só o meu pai, como a minha tia. Sem tudo isto a nossa vida - dos filhos, netos, e bisnetos - teria sido muito diferente.

Relato de Ana Gomes, bisneta de António Tomaz da Conceição
 

 
 

  • José António Rebelo Silva, prior da freguesia de Colares desde 2006, ofereceu-nos uma missa que nos comoveu e, espantosamente, consolou.

  • Os dias contigo são os bocadinhos de manhã, tarde e noite que são avaramente permitidos aos mais felizes.

  • O que contam os descendentes de quem viveu a guerra de forma anónima? Cem anos depois do início da I Guerra Mundial, já sem a geração do trauma, a memória reconstrói-se e tenta-se a biografia portuguesa do conflito europeu.Durante três dias, os testemunhos chegaram ao Parlamento na iniciativa Os Dias da Memória.

  • Ao contrário da generalidade dos militares portugueses evocados nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego (1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento

  • Joaquim de Araújo foi uma testemunha privilegiada de alguns dos mais duros combates da guerra em Moçambique

Comentários

Os comentários a este artigo estão fechados. Saiba porquê.