Identidade histórica em mudança (II)

A modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais.

2. – Actualidade  Com efeito, a imagem que o português possuía da Europa alterou-se radicalmente e consolidou-se negativamente entre 2008 e 2015. Se a antiga imagem da Europa se identificava, do ponto de vista histórico e civilizacional, com uma sociedade fundada na justiça social, no progresso económico, na qualidade de vida e no desenvolvimento científico e tecnológico, hoje, em função da consolidação do euro como moeda comunitária e da imposição alemã da regra de ouro das finanças públicas (máximo de 3% do défice), ela identifica-se com a existência de dois blocos de países, o primeiro capitaneado inflexivelmente pela Alemanha, constituído pelos Estados mais ricos da Europa Central e do Norte, e o segundo, para além da Irlanda, por um agrupamento de países empobrecidos do Sul (Grécia, Portugal, Espanha, Chipre, de certo modo a Itália), em perda acelerada de soberania, que, para fazer face às despesas correntes do Estado, se tornaram “eternamente” devedores dos primeiros através de uma troika de instituições financeiras (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). A nova imagem da Europa comunitária identifica-se, na mente dos portugueses, com acções penalizadoras, mesmo mortificantes, geradoras de desemprego de longa duração e de emigração forçada, desigualdade entre países e menor justiça social para as populações mais desfavorecidas. Existe, assim, uma diferença abissal entre o que Portugal esperava da Europa em 1980 e o que hoje espera, gerando sentimentos contraditórios – no primeiro momento, um optimismo voluntarioso; no segundo, um pessimismo desencorajante. Tendo a actual elite política e administrativa como principal motor de acção, assistiu-se em Portugal, como doutrina dominante, imposta pelas necessidades de financiamento do Estado, entre 2008 e 2014, a um inaudito e escandaloso empobrecimento da população com expressa destruição da recente e ainda economicamente insegura classe média. Neste sentido, o movimento geral social que enquadra a actualidade directa dos anos mais recentes reside, justamente, no choque social frontal havido entre as duas forças ou os dois movimentos sociais anteriores, gerando um país despido de identidade histórica própria, um país sonâmbulo, perplexo e petrificado, permanentemente em estado de choque.

A diferença radical entre a modernização europeia alcançada entre 1980 e 2000 e as políticas públicas desenvolvidas entre o princípio do século e 2014 pode ser sintetizada, de uma maneira simbólica mas muito expressiva, pela diferença de posição de Portugal no Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela Organização das Nações Unidas, que estabelece a qualidade de vida dos povos (educação, saúde, esperança de vida, riqueza…) entre 2002 e 2012. Naqueles anos, Portugal encontrava-se numa honrosa 23.ª posição, situado entre os países mais desenvolvidos; dez anos depois, encontra-se no 43.º lugar. A primeira posição reflecte os resultados do movimento de modernização europeia de Portugal; a segunda reflecte os resultados do segundo movimento social, de retracção no avanço de uma sociedade tendencialmente comunitária (a lei expressa o bem comum e não os interesses do Estado) e de enorme mobilidade social. Com efeito, em menos de 15 anos do século XXI, Portugal perdeu 20 lugares, o que significa que foi ultrapassado por outros tantos países.

A destruição dos resultados sociais atingidos pela modernização europeia de Portugal que os governos de Portugal empreenderam este século, retirando a esperança de um futuro estável para as famílias portuguesas e uma visão optimista de futuro para a maioria da juventude não pertencente à elite política e empresarial, conduziu à introdução maciça e acelerada de novos valores (emergidos, sem dúvida, através da intensa promoção do consumismo e do individualismo gerados pelo consulado de Cavaco Silva à frente do Governo) e à perda de referentes éticos e culturais do passado, como o valor do trabalho, o valor da amizade, o valor da poupança, o valor da honestidade, o valor da espiritualidade e da transcendência, o valor do saber desinteressado, o valor da memória histórica e cultural, substituídos por valores hedonistas (o prazer e a realização individuais acima de tudo, que é o mesmo que dizer, em geral, o dinheiro acima de tudo), valores técnicos de eficiência e de competição (de concorrência, no sentido em que invariavelmente ganha quem nasceu em berço de ouro e possui uma formação superior e conhecimentos pessoais no empresariado e nos partidos instalados, os restantes forçados a contentarem-se com empregos rotineiros e vencimentos débeis, sem esperança de que as suas qualidades sejam reconhecidas e possam atingir um dia um estatuto financeiro superior), niilistas (isto é, uma multiplicidade infinita de valores, nenhum dos quais de superior valia ao do dinheiro e do prazer, ambos medidos sobretudo pela ostentação de bens) e individualistas (a sociedade não se constitui como uma comunidade coesa solidária, mas como um agregado ou uma soma de valor nulo de indivíduos e todas as políticas são firmadas em nome da primazia do indivíduo e dos seus interesses e desejos).

Parado no meio do caminho da sua realização europeia, é forçoso que Portugal retome a sua caminhada histórica. Fazemos votos para que 2015 seja o ano desta retomada.

Escritor

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