Identidade histórica em mudança (I)

A modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais.

Sociologicamente, a modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais:

1. – operou-se uma profundíssima alteração nos sectores produtivos da economia, com a terciarização desta a suplantar os sectores primário e secundário. A imagem representativa de Portugal abandonou a sua faceta rural e bucólica, carregada de pobreza, para se evidenciar como a de um país moderno, informatizado, europeu, turístico, de economia totalmente aberta ao exterior, acolhedora de imigrantes;

2. – operou-se uma profundíssima alteração na estrutura política do Estado com a passagem de um sistema hierárquico vertical e corporativista para um sistema de representação parlamentar democrática ao modo da Europa Ocidental;

3.  – operou-se uma profundíssima alteração do lugar geográfico e estratégico internacional de Portugal, deslocando-se o ângulo de actuação e reacção do Atlântico (o Império) para a Europa; resta, dos tempos passados, ligando o passado ao presente e a história à identidade nacional, os vagos traços de uma incerta Lusofonia;

4. – operou-se uma profundíssima alteração dos vínculos sociais institucionais tradicionais da cultura e dos hábitos dos portugueses (como a antiga ligação umbilical à Igreja e o predomínio de uma família clássica), propiciada pela aceleradíssima laicização e até profanização dos costumes obviada pela avalanche de novos padrões comportamentais individualistas, relativistas e niilistas advindos da Europa e dos Estados Unidos da América;

5. – operou-se uma profundíssima alteração ética na hierarquia social com desvalimento das antigas profissões nobres, como a do professor, do político, do militar, do sacerdote e do intelectual, substituídas pelo técnico especialista em economia e em gestão, pelo técnico em aplicações de ciência experimental e pelo comentador televisivo, ora considerados de superior valia e utilidade.

De certo modo, estas cinco alterações profundas no tecido social e na mentalidade nacional constituíram-se como realizações factuais da modernização europeia de Portugal e, com elas, o país actualizou-se historicamente e europeizou-se socialmente.

Assim, na segunda década do século XXI, o retrato histórico de Portugal figura já o resultado do violentíssimo choque social e cultural entre duas forças motrizes de natureza social, bem como o efeito deste choque na consciência do cidadão português:

1. – Tempo longo A primeira força social imparável que tem regido a sociedade portuguesa como um todo consiste na esforçada modernização europeia de Portugal desde 1980 (assinatura do tratado de pré-adesão de Portugal à Comunidade Europeia) até ao final do século, princípio do XXI, ambição colectiva desenhada desde o consulado do Marquês de Pombal e só realizada plenamente na actualidade. Esta primeira força, mais do que um movimento social, constituiu, verdadeiramente, uma autêntica vaga histórica que atravessou o Constitucionalismo Liberal, a Regeneração e a I República, foi bloqueada ao longo do Estado Novo por uma visão política rural, imperial e católica da sociedade, e apenas integralmente executada e efectivada de um modo global após 1980.

O movimento social de modernização europeia de Portugal, como cumprimento histórico, correspondeu à inspiração dos três “Dês” postulados pelo Movimento das Forças Armadas, “Descolonizar, Democratizar e Desenvolver”, assumindo um tempo social novo, destituído de Império, sem prevalência da religião sobre os comportamentos individuais e sociais, sem regime de condicionamento industrial, desenvolvendo uma intensa terciarização dos sectores produtivos e uma esperançosa legislação igualitarista, fundada na justiça social, e permitiu, por um lado, a criação e a consolidação de uma fortíssima classe média e, por outro, um tempo de inovação cultural e científico, ambos sem paralelo no Portugal do século XX. Constituiu o tempo de ouro ou o tempo luminoso (cerca de um quarto de século) de justiça social, de coesão e igualdade sociais, de fortíssima mobilidade social (filhos de operários e pequenos agricultores tornam-se professores, médicos, advogados, economistas), do impetuoso arranque de uma nova visão cultural e estética de Portugal, de uma intensíssima actualização de todos os sectores sociais, económicos, académicos, culturais, científicos, desportivos e religiosos. Desde a Regeneração de Fontes Pereira de Melo que não se viveu tão bem nem tão “modernamente” ou “europeiamente” em Portugal como no período entre 1980 e o final do século. De certo modo, em quase todos os indicadores de qualidade de vida, atingiram-se desempenhos que nos colocavam, no princípio do século XXI, numa posição mediana nas estatísticas europeias, tendo Portugal partido em 1974, para a quase totalidade delas, de um lugar altamente subalterno, mesmo terceiro-mundista.

2. – Tempo conjuntural A segunda força social opõe-se à primeira e deriva directamente, não da sociedade civil e das aspirações culturais e históricas de tempo longo, mas da recente administração do Estado, evidenciando uma regulação social que tem apenas em conta – e apenas – a saúde orçamental das finanças públicas e as aspirações tecnocráticas por que a elite político-administrativa, quebrando a mobilidade social e restaurando o tradicional estado de coisas hierárquico em Portugal, fortemente dividido entre “senhores” e subordinados, intenta reduzir a maioria da população à luz de uma visão burocrata, monetarista e tecnocrata da Europa. Este segundo movimento social inicia-se com o discurso da “tanga” de Durão Barroso (2002), opõe-se frontalmente às dinâmicas históricas criadas pelo primeiro movimento e prolonga-se até aos dias de hoje, deixando, porém e de novo, o país de “tanga”, agora não o Estado, mas a quase totalidade da população e das empresas de pequena dimensão (a maioria). O segundo movimento social, ao contrário do primeiro, que perfazia parte integrante do processo histórico europeu, há muito realizado na maior parte dos países seus constituintes e de certo modo constitutivo de um “desígnio” nacional (apenas o Partido Comunista votou contra a adesão de Portugal à Comunidade Europeia), é artificial, criado por problemas financeiros do Estado (crise da dívida soberana) e foi enfrentado, em Portugal, por uma fanática política de austeridade (dizemos “fanática” porque ultrapassou as metas de austeridade impostas pelo memorando de entendimento, subordinando todas as actividades e sectores do Estado e da sociedade a uma obstinação encarniçada de poupança orçamental e de brutal aumento do impostos) que empobreceu a maioria da população, privilegiou o sector financeiro e, paradoxo dos paradoxos, não concedeu um excedente de saúde contabilística ao Estado.

De um modo muito claro, tão explícito como nunca houvera em Portugal, propõe-se a adesão a um neoliberalismo global que deposita o país nas mãos de um mercado financeiro (quase) totalmente desregulado e de uma economia concorrencial de cunho selvagem (a tal que mata, segundo o Papa Francisco).

Escritor

A segunda parte do texto será publicada esta sexta-feira.

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