Memórias de Família

Memórias de Família

Em horas de pausa, o médico disparava

Joaquim Machado Guimarães Júnior foi louvado por “serviços que não são da sua profissão”

A vida dos médicos na guerra era suposto ser calma, com algum conforto, na rectaguarda, como acontecia com outros oficiais. O que conta o neto de José Joaquim Machado Guimarães Júnior é que essa não era uma vida que tivesse bastado ao avô, que partiu com 27 anos para França, como voluntário no exército, acabando por fazer parte do Serviço Médico do Corpo Expedicionário Português. Embarcou a 15 de Fevereiro de 1917 rumo a Brest.

O neto, Nuno Borges de Araújo, conta que em família sempre se recordou a sua passagem pela frente de batalha portuguesa, a fazer o que era de médico – tratar de feridos e doentes – mas também, em horas de pausa, a pegar na sua arma e a fazer uso dela. Numa das vezes em que isso aconteceu, o tenente-médico terá ido para a torre de uma igreja semi-arruinada com uma metralhadora, e desse ponto favorável terá morto muitos alemães, não deixando que passassem em direcção à linha portuguesa, contou à historiadora Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, o seu neto.

Dos registos oficiais deste médico natural de Guimarães, descendente de uma família com tradição na área dos têxteis do vale do Ave, não fazem parte menções directas a estas intervenções não clínicas, até porque tal não faria parte da sua competência na frente e nem deveria ser autorizado a tal, refere seu neto. Ainda assim, foi louvado em 24 de Outubro de 1917 pelo cumprimento das suas funções e por “serviços que não são da sua profissão”, refere a historiadora.

José Joaquim esteve na batalha de La Lys. Foi primeiro dado como desaparecido e depois soube-se do seu cativeiro, tendo sido feito prisioneiro em La Couture, a 9 de Abril de 1918. Segundo o que o próprio tenente-médico relatou aos familiares, quando se viu aprisionado desfez-se dos seus galões e de qualquer identificação que levassem os alemães a julgá-lo oficial. Possivelmente poderá tê-lo feito para evitar interrogatórios ou uma eventual execução. Ele assim aparece, sem sinais de patente, num postal alemão da época que mostra uma coluna de prisioneiros portugueses e ingleses a caminhar com ar desolado.

José Joaquim referia ter estado em dois campos de prisioneiros alemães. Referia ter perdido 30 quilos. As condições eram deploráveis, tendo sempre referido que chegou a lavar a roupa em charcos, para poder manter algumas condições de asseio.

Terminada a Guerra, regressou ao Corpo Expedicionário Português a 16 de Janeiro de 1919, vindo da Holanda, como tantos outros prisioneiros que, aos poucos, foram enviados da Alemanha para a França e depois para Portugal. Passou alguns dias em Paris e partiu rumo a Lisboa a bordo do navio inglês Hellenus. Desembarca na capital portuguesa a 29 de Janeiro de 1919. Vinha debilitado, refere Nuno Borges de Araújo. Como resultado dos gaseamentos a que foi sujeito durante o conflito, e em particular no 9 de Abril, a sua voz voltou a mesma. Deixou o Exército em 1941, mas continuou a ser médico em Braga. Morreu em 1952 vítima de um derrame cerebral.

Recebeu a mais alta condecoração, a Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito, “por ter prestado com a maior dedicação e zelo serviços da sua especialidade debaixo de fogo inimigo por ocasião da batalha de 9 de Abril de 1918”. Como mostra o seu registo militar, nesse dia, acompanhou espontaneamente, sob um intenso bombardeamento, uma companhia que se dirigia para um posto a ocupar, fazendo pensos aos feridos durante todo o trajecto que efectuou, refere a historiadora Margarida Portela.

Curioso é referir que se recusou a pagar pela medalha, como lhe pediam, ficando apenas com o papel que lha concedia. Dizia que “se lhe tinham atribuído a mesma, uma vez ganha lhe devia ser dada e não paga”.
 

  • José António Rebelo Silva, prior da freguesia de Colares desde 2006, ofereceu-nos uma missa que nos comoveu e, espantosamente, consolou.

  • Os dias contigo são os bocadinhos de manhã, tarde e noite que são avaramente permitidos aos mais felizes.

  • O que contam os descendentes de quem viveu a guerra de forma anónima? Cem anos depois do início da I Guerra Mundial, já sem a geração do trauma, a memória reconstrói-se e tenta-se a biografia portuguesa do conflito europeu.Durante três dias, os testemunhos chegaram ao Parlamento na iniciativa Os Dias da Memória.

  • Ao contrário da generalidade dos militares portugueses evocados nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego (1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento

  • Joaquim de Araújo foi uma testemunha privilegiada de alguns dos mais duros combates da guerra em Moçambique

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