E agora, alguma coisa completamente diferente

Aqui vai o relato de duas semanas da história portuguesa, as duas primeiras semanas do mês de Agosto de 1964, em Argel.

Para fugir dos dias de lixo que atravessamos, e poupar os leitores do PÚBLICO a descrever mais uma vez o país indecente que temos hoje, vou para esse “país estrangeiro” que é o passado, “onde as coisas se fazem de modo diferente”. Vou também regressar aos prazeres da história narrativa, que se pode ler como uma ficção, mesmo quando é, como neste caso, trágica e comicamente verdadeira.

Aqui vai, pois, como um pobre presente aos meus leitores, o relato de duas semanas da história portuguesa, as duas primeiras semanas do mês de Agosto de 1964, em Argel. Com a companhia de Humberto Delgado, Álvaro Cunhal, Piteira Santos, Tito de Morais, Pedro Ramos de Almeida, Manuel Sertório, Adolfo Ayala e mais alguns. Não eram santos, mas eram outra gente, com outro mundo, outros riscos, outra coragem, outro Portugal, um “país estrangeiro”. Bom ano!

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No dia 27 de Junho de 1964, Humberto Delgado chega a Argel, governada pelos combatentes argelinos que tinham acabado de ganhar a guerra contra os franceses. Com Cuba e o Vietname, a Argélia era um dos novos centros revolucionários do mundo. Delgado estava ainda combalido das cirurgias que tinha feito nos meses anteriores em Praga. Tinha uma ferida que exigia tratamento diário, mas estava contente. É recebido como um chefe de Estado e fica instalado numa vivenda com vista para “o belo Mediterrâneo”. Mede a sua distância da pátria com “medidas de aviador”, e achava-a “tão perto de mim”.

Mas não quer “confusões”, vem para Argel “como leader da Oposição Portuguesa (…); como Chefe de Estado no exílio, (…) como Chefe Revolucionário”. Era o “chefe” da oposição portuguesa e pensava exercer a sua autoridade sem qualquer contestação. Nunca tal se vira na história da oposição e viria a provocar um enorme conflito, levando-o a um isolamento que facilitaria a cilada montada pela PIDE e o seu assassinato no ano seguinte. É o clímax desse conflito, que se passou nestas semanas de brasa, um mês depois de ter chegado, que vamos relatar.

A chegada de Delgado a Argel era vista como uma esperança para uns e como uma ameaça para outros. Nos bastidores, inicia-se uma série de manobras para “capturar” o general e a sua influência: “existe em todos os grupos e personalidades a secreta esperança de aliciar o general e o submeter à sua influência". Em meia dúzia de dias, Delgado recebeu todas as queixas, do enorme arsenal de queixas que entretanto se tinham juntado na colónia portuguesa em Argel, e começa a absorvê-las como suas, em particular as críticas ao órgão dirigente local, que controlava as relações com as autoridades argelinas e por isso decidia sobre autorizações de entrada, empregos, instalações, ou seja, sobre a vida da pequena colónia de 40 portugueses exilados. Esses dirigentes incluíam Piteira Santos, Rui Cabeçadas e Tito de Morais, todos activos opositores a Salazar, e que representavam a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN) fundada pouco antes.

Delgado, desejoso de afirmar a sua autoridade, começa a tomar decisões que eram mais “administrativas” do que políticas, mas que subvertiam os poderes instalados em Argel. Foi dele também a iniciativa do conflito. Em 26 de Julho, o jornal oficioso argelino, o Alger Republicain, publica um comunicado de Humberto Delgado. Começa por prevenir que “a FPLN não é já representada pela 'Comissão Delegada' que cessou as suas funções”. O objectivo do comunicado era “libertar” as entradas na Argélia do controlo de Piteira Santos e nomeia um novo “agente de ligação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros”. Piteira e Cabeçadas não aceitaram a nomeação, porque não fora feita no órgão próprio, a que eles pertenciam. Delgado comenta com fúria – só faltava que o general tivesse “menos direitos em escolher pessoal auxiliar do que quando era um simples major ou do que tem um chefe de repartição na administração pública!” Na prática, não houve alteração no controlo das entradas.

Este comunicado pegou fogo aos portugueses de Alger, muitos deles veteranos da oposição, desertores da guerra colonial, exilados perseguidos pela participação no golpe de Beja, ou seja, não eram meninos de coro. Estavam divididos politicamente e iam ainda dividir-se mais com a tensão criada pelo conflito sino-soviético, havia comunistas, trotsquistas, maoístas, castristas, socialistas radicais, putschistas, quase todos partidários de formas violentas de acção. Alguns eram de um novo movimento, o Movimento de Acção Revolucionária (MAR), e outros participavam na cisão pró-chinesa do PCP que deu origem à Frente de Acção Popular (FAP). Junto com as posições de Delgado foi o agravamento do conflito entre o PCP e a FAP em Argel que criou o pano de fundo para a crise da oposição portuguesa na Argélia.

As divisões políticas estavam muito extremadas, reflexo da situação internacional que chegava a Argel com reflexos do que se passava em África, em Cuba, na China, na URSS, e mais tarde na Indonésia e no Vietname. Esse agudizar dos conflitos advinha de estarmos numa época de cisões e de recrutamentos competitivos. As pessoas dividiam-se, cindiam, saíam, ou entravam, tomavam “partido” por diferentes organizações, num ambiente de crítica feroz e de mútuas acusações de traição. Uma profunda mudança geracional abria caminho para o ambiente tumultuoso dos anos sessenta com novas referências políticas, diferentes “faróis” do socialismo, que brilhavam no início da década com todo o fulgor.

Neste contexto, lealdades e traições estavam na ordem do dia. Numa comunidade fechada, exilada, isolada, num país estrangeiro em que uma guerra duríssima tinha acabado há pouco, em que as instituições eram inexistentes e uma memória da violência estava muito viva, cada opção e cada acção podia ter consequências muito ampliadas. À distância do tempo e das circunstâncias, podemos achar exagerados os receios e os riscos que cada um sentia poder correr, mas na Argel do início da década de sessenta a possibilidade de a política ser uma opção de vida e de morte era mais real do que hoje imaginamos.

Ameaças físicas eram comuns, e promessas futuras de encostar quem discordava ao paredão do fuzilamento foram efectivamente feitas. Delgado era useiro e vezeiro nesse tipo de ameaças, de “tiros” e “paredão”, e só nestes anos teria sido possível um incidente como o que relata Rui Cabeçadas, quando Humberto Delgado “consultou o médico Dr. Marcelo Fernandes sobre a forma de dar um tiro no Eng. Tito de Morais sem lhe causar a morte. Conselho do referido médico: no pé.”

Parte da agressividade de Delgado, para além do seu feitio autoritário, vinha do sentimento de urgência que tinha para iniciar acções armadas em Portugal. Para ele, só esse tipo de acções tinha sentido e ridicularizava tudo o resto como uma “guerra de papel”. Recebeu um impulso determinante do Presidente argelino Ben Bella, num encontro no final de Julho de 1964. Ben Bella promete-lhe todo o apoio militar, treinos, armas e logística, para fazer o que entendesse, apenas com a reserva de que não seriam comprometidos militares argelinos. O contingente a ser preparado era de cerca de 600 homens e havia a possibilidade de serem cedidos alguns aviões militares, visto que havia pilotos entre os desertores portugueses. Na prática, isto equivalia a uma declaração de guerra da Argélia a Portugal. Era tudo o que Delgado queria ouvir.

Entretanto, chega a Argel o novo representante do PCP, Pedro Ramos de Almeida. O PCP tinha tido as maiores reservas na instalação da FPLN na Argélia. Lembrava que o PC argelino permanecia proibido, e criticava a dependência que existiria em relação à política argelina. Desconfiava também dos contactos trotsquistas de Piteira Santos, através do grego Michel Raptis, “Pablo”, com Ben Bella. A Argélia era, para o PCP, território hostil, preferia Roma. Mas perdeu essa batalha e acabou por enviar delegados a Argel, primeiro Pedro Soares e depois Pedro Ramos de Almeida, em quem Cunhal depositava toda a confiança. O objectivo que lhe era apontado era afastar a FAP de qualquer papel em Argel e moderar os planos revolucionários de Delgado, quase todos de um irrealismo completo.

Essa tarefa era quase impossível. Delgado aproximava-se dos “fapistas”, cuja linguagem de acção imediata lhe agradava e, impulsionado pelas ofertas de Ben Bella, não queria outra coisa que não fosse voltar-se para as “operações”. O MAR oscilava entre os dois lados, entre Delgado e os “fapistas” e os seus simpatizantes, e relações com o grupo de Piteira, que formalmente era membro do MAR.

Começa então o mês de Agosto de 1964 e as semanas onde tudo aconteceu.

(Continua.)

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