Disautonomia universitária

Um sistema em disautonomia compromete a eficácia e a eficiência do ensino superior.

A autonomia das universidades públicas tem sido referida amiúde nos últimos 20 anos. A noção mais comum é essa autonomia universitária requerer um ambiente legal e de financiamento estável.

A discussão sobre a autonomia universitária, ou a falta dela, anda frequentemente à volta desses aspectos. O sistema educativo português sofreu cortes financeiros muito significativos, superiores a 10%, em termos nominais, nos últimos anos. Mas esse pano de fundo de exiguidade e de penúria, que nos estigmatiza mas que nem todos admitem, não é o tema deste texto, mesmo que esteja inevitavelmente presente.

A autonomia das universidades exige também a existência de comunicação fluida e coordenação com o Governo, que financia hoje em dia apenas parte da actividade desenvolvida.

É precisamente neste aspecto que é útil olhar para o conceito de disautonomia, termo que em medicina se refere ao mau funcionamento do sistema nervoso autónomo. Este mau funcionamento afecta os nervos que conduzem informação do cérebro aos órgãos do corpo e vice-versa.

Disautonomia é diferente de falta de autonomia. É a falta de ligação necessária entre as várias partes para que o todo possa funcionar.

Portugal, ao contrário do que sucedeu na Europa, através do aumento do financiamento público, ou nos Estados Unidos, através do financiamento privado, leia-se das famílias, nunca beneficiou de um período de estabilidade financeira, condição necessária que lhe permitisse desenvolver o sistema de ensino superior para responder às necessidades do país no que toca a qualificações e a competências. O esforço feito no financiamento da ciência, nas últimas décadas, nunca nos conseguiu levar a patamares da percentagem do PIB comparativos com os nossos parceiros europeus, mas, apesar disso, permitiu o aparecimento de universidades competitivas e apelativas internacionalmente.

Os desafios lançados ao ensino superior, num contexto global, justificam decisões estratégicas envolvendo a educação, a economia, os empregadores e os diversos actores sociais.

Usando uma linguagem próxima da medicina para caracterizar a nossa situação actual pode dizer-se que começamos a ter órgãos capazes de funcionar de uma forma autónoma. Falta-nos, infelizmente, uma coordenação que existe em todos os países que têm sistemas universitários competitivos, sob as mais variadas formas: incentivos financeiros (devidamente contratualizados), controlo da qualidade, intervenções dos mais variados stakeholders. Contudo, em Portugal, o problema é ainda mais grave, porque a comunicação entre as várias universidades e o Governo funciona de uma forma deficiente e com numerosas barreiras, algumas delas verdadeiramente intransponíveis, mesmo quando dependem, supostamente, apenas das próprias instituições.

Se continuarmos assim, não vale a pena lutar por mais autonomia universitária, mas sim assistir, estupefactos, à progressão deste estado de disautonomia, em que vivemos, como sucede nalgumas doenças, muito frequentes, como a diabetes, em que os órgãos não se encontram primariamente lesados, mas a doença está nos vasos que os irrigam e nos nervos que os estimulam e que não conduzem bem os estímulos ou mesmo, como muitas vezes sucede, nada conduzem.

Em disautonomia universitária, os diferentes órgãos, leia-se as instituições que constituem o ensino superior, trabalham de forma independente, frequentemente em descoordenação entre si. E a fadiga (administrativa, de regras de controlo ad hoc) instala-se. Durante algum tempo, o sistema parece funcionar, até que os efeitos desse mau funcionamento começarão a ser visíveis. Um sistema em disautonomia compromete a eficácia e a eficiência do ensino superior. Resolver a situação de disautonomia não é falar em (mais) autonomia universitária ou apenas em mais financiamentos. Resolver consiste em assegurar uma ligação fiável, célere e duradoura entre as várias partes do sistema de ensino superior antes que seja demasiado tarde e a doença se torne irreversível.

António Rendas e Pedro Pita Barros

Universidade Nova de Lisboa

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