Curado trocou de guerra e foi para o Ultramar

Um espectáculo para assinalar a Grande Guerra acabou transformado num repositório de memórias da Guerra Colonial.

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No início, havia apenas uma certeza. O espectáculo que a Casa da Música, no Porto, iria criar para assinalar os cem anos da I Guerra Mundial, e que contava com a participação de membros da Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA) e finalistas do curso de Dança do Balleteatro, não ia ser composto por histórias de guerra. Foi isso que Jorge Prendas, do Serviço Educativo da Casa da Música, disse a Tim Yealland, o produtor inglês da English Touring Opera convidado a montar o espectáculo: “Vamos fazer uma reflexão sobre o conflito, mas não contar histórias de guerra.” Só que isto foi antes de pedirem aos membros da ADFA que partilhassem as suas memórias. O que eles contaram sobre as suas experiências na Guerra Colonial mudou tudo. A guerra que vai subir ao palco da Sala Suggia, na próxima quarta-feira, já não é uma guerra mundial. É a Guerra Colonial Portuguesa. Contada por quem lá esteve.

“Apanhámos cada murro no estômago, com as histórias que nos contaram, que acabámos por fazer exactamente o contrário do que tínhamos decidido. Fomos cilindrados”, diz Jorge Prendas. Os ensaios começaram em Outubro, ao ritmo de um fim-de-semana por mês e desde o primeiro momento que o grupo de cerca de 25 participantes da ADFA — antigos combatentes e alguns familiares — partilhou as experiências mais traumáticas das suas vidas. Os momentos em que perderam braços e pernas. Em que deixaram de ver. Em que tudo o que fora a sua vida até ali se lhes varreu da memória. Em que morreram os amigos. Do projecto inicial, pouco mais restou do que o nome do espectáculo: Curado, em honra de António Gonçalves Curado, que, a 4 de Abril de 1917 entrava para a História como o primeiro soldado português a morrer em combate na I Guerra Mundial.

Agora, Curado passeia-se pelo argumento que Tim Yealland foi construindo com os participantes do espectáculo, como uma personagem emprestada numa guerra que não foi a dele. Os membros da ADFA são as verdadeiras estrelas do projecto e cada um deles tem direito a ser apresentado ao público, para que o passado tenha rosto. 

“Rocha Nunes foi ferido pelo rebentamento de uma mina militar a 22 de Dezembro de 1971.” Martinho Rocha Nunes, 64 anos, é o primeiro a deixar-se iluminar por um aluno do Balleteatro, mostrando-se à audiência. Foi ferido em Angola, onde estava desde Janeiro de 1971. Tinha 21 anos. Foi para a guerra quando disseram que tinha de ir. Nunca lhe passou pela cabeça fugir daquele futuro. “Eu vivia na aldeia, na zona de Castelo de Paiva. A rádio era pouca, não estávamos muito politizados. Eu não tinha noção para o que ia”, conta à Revista 2, na sede da ADFA. Começou a percebê-lo quando saiu do navio Vera Cruz e o ar quente de África, que lhe deixou o corpo coberto de um suor pegajoso, o atingiu de repente. “Foi um choque. E quando a malta começou a desembarcar, uma das frases que eu ouvia era: ‘Mais carne para canhão.’ E eu pensava: ‘O que é isso?’ Não percebi logo o significado.”

A mina explodiu sob o carro que o transportava de volta ao acampamento, um dia mais cedo do que o previsto, porque a companhia que integrava ia “preparar o Natal”. Ia de pé, sobre o rodado, vagamente protegido por sacos de areia que ajudavam a reduzir o impacto das explosões. Ainda assim, foi cuspido, fracturou as duas pernas. “O joelho esquerdo está fixo, não dobra. O direito faz um ângulo, mas não mais do que isto”, explica enquanto flecte ligeiramente a perna.
Martinho Rocha Nunes tem um ar sossegado, uma voz pausada. Diz que quando regressou da guerra “desligou o chip”. Mas nunca esqueceu. E o pior é que “as pessoas não entendem” o que aquilo foi, diz. Porque não se fala. Não se falou durante tempo de mais. “A História não nos tratou bem. Fomos vítimas de uma guerra sanguinária, para a qual não estávamos preparados”, sustenta. 

Soube logo que estava cego

Ao olhar para Rocha Nunes, não se vêem as marcas de guerra, mas Adélio Simões, 73 anos, não tem como as esconder. Os óculos escuros tapam os olhos sem serventia, mas as dez cirurgias faciais a que foi submetido não ocultam as cicatrizes que lhe cruzam o rosto. Natural de Condeixa, Adélio fazia sapatos antes de ir para a guerra e era nessa área que se imaginava a trabalhar. Talvez com uma pequena empresa de calçado. Uma “armadilha”, num trilho na mata angolana, mudou-lhe o futuro. “Um colega ainda gritou para nos avisar, e eu joguei-me para o chão, do lado direito. Tive o azar que desse lado havia uma carga.”

Foi no dia 14 de Agosto de 1963, Adélio tinha chegado a Angola quatro meses e meio antes. “Só vi a chama e senti uma pancada na cara, como se ela tivesse desaparecido. Eu soube praticamente logo que estava cego. Fiquei sempre consciente e gritava que me dessem um tiro, que me matassem. Sim, gritei muitas vezes”, conta. Adélio foi transportado pelos colegas 12 quilómetros até ao acampamento e, dali, mais 90 quilómetros por caminhos de terra batida, até ao Hospital de S. Salvador do Congo. Seguiu-se a transferência para Lisboa e seis anos de internamento. “Foi complicado. Fizeram-me dez intervenções à cara. Éramos umas cobaias que andavam ali. Fui-me convencendo de que a vida tinha sido aquela, mas tinha certas horas em que cheguei a pensar. ‘Quando sair daqui, mato-me’.”

Hoje Adélio parece em paz. Graças a uma técnica de recorte de figuras (girafas e cavalos, helicópteros ou pontes) e preenchimento do fundo com tintas, criou os quadros que ornamentam o salão da ADFA no Porto, tem três filhos e três netos. Mas percebe-se que muita dessa paz foi conseguida através do silêncio. Do “desligar o chip” de que falava Rocha Nunes. “Os meus filhos nunca me perguntaram por que não via, porque tinha assim a cara. A mãe soube lidar muito bem com eles. Agora, um dos meus três netos, com dois anos e meio, já diz: ‘O avô não vê.’ Já percebe. O que nunca lhe vou fazer é tirar os óculos e mostrar-lhe os olhos. Não quero, porque ele é muito sensível”, diz.

O silêncio, o não fazer perguntas e não dar explicações são frases repetidas por quase todos. Como o desconhecimento do que os esperava no fim da viagem de barco que os levava para a guerra. Ou as saudades que sentiam de casa. Quando Jorge Prendas, num dos ensaios, lhes pede que o ajudem a construir a canção que acompanhará a cena que representa a partida para a guerra, o resultado foi quase um lamento, uma prece melancólica, carregada de saudade e alguma esperança à mistura. “Até um dia/ Até à volta/ Que eu vou voltar/ Se Deus quiser/ Tanta saudade/ Levo comigo/ E as memórias/ De quem vou deixar.”Esta cena é uma das favoritas de Sara Marques, 19 anos, uma das finalistas do Balleteatro que irá partilhar o palco com o grupo da ADFA. “Para mim, é uma das cenas mais importantes porque eles vão para um sítio que não conhecem. Eram pessoas normais, que foram recrutadas, que são mandadas para ali e tiveram de comparecer”, diz. Enquanto os antigos combatentes relembravam as suas experiências de guerra, Sara absorvia tudo intensamente. “Foi emocionante. O meu pai esteve em Angola e ao ouvi-los falar estava a reviver o que ele passou também. Ele regressou sem problemas físicos, mas ainda acorda com pesadelos relacionados com a guerra.”

Por causa do pai, Sara sabia o quanto a guerra tinha deixado marcas nos homens. O tema também não era novo para o seu colega, Bruno Marques, de 18 anos. “Imaginava que tinha sido violento porque estamos a falar de uma guerra, mas não sabia como as coisas se tinham passado. Tinha a noção de que ainda havia gente traumatizada porque o avô de uma amiga passou pela guerra e está traumatizado até hoje, mas nunca tinha experienciado algo como isto. Ao início, foi um bocado difícil de assistir, mas foi tocante. Tocou-nos a todos”, revela.

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Os alunos do Balleteatro e a equipa da Casa da Música ouviram Reis Martins, 71 anos, relembrar um acontecimento que dificilmente irão esquecer. Em Moçambique, durante uma emboscada, um dos soldados que o acompanhava foi atingido por um disparo de bazuca que o cortou ao meio. “Senti muita raiva. Não tinha assistido a outras mortes e a sensação de impotência fez crescer essa raiva. Em África, anoitece muito cedo, aquilo aconteceu à tarde e não tínhamos como remover o corpo. Tivemos de passar ali a noite. O rapaz ficou sob uma viatura, porque não tínhamos caixão. Foi montada guarda, mas as hienas têm um faro terrível e durante a noite elas estavam por ali, com aquele riso macabro que elas têm, por terem farejado a morte.”

Reis Martins esteve em Moçambique entre 1969 e 1971. Chegou lá com 25 anos, por ter pedido vários adiamentos para acabar o curso. Como tantos outros, a sua estada em África foi interrompida por uma mina, que pisou, durante uma operação. Tal como acontecera com o colega morto pela bazuca, o acidente aconteceu a meio da tarde, quando já anoitecia e os helicópteros não podiam aterrar. 

A história do seu salvamento, que os filhos desconhecem (“acho que nunca contei esta cena do helicóptero a ninguém, estou a contá-la a si”, diz), é recordada com a mesma voz suave que usa ao longo de toda a conversa, a emoção apenas visível numa lágrima que lhe escorre pela face. “Fui levado para o acampamento e tive de aguentar toda a noite, até poder ser retirado na madrugada seguinte. Tive sorte e estou convencido de que, se estou aqui hoje, foi por ser amigo do médico Jorge Pereira da Silva, que estava no hospital de Vila Cabral. Quando chegou lá a notícia de que o alferes Reis Martins tinha sido ferido, ele foi para o rádio e esteve a noite toda a explicar ao soldado maqueiro que estava comigo o que é que ele devia fazer.”

Quando quer, Reis Martins tem uma voz poderosa, pelo que lhe atribuíram algumas linhas de texto ao longo do espectáculo. Na cena que retrata a inspecção aos novos recrutas, é ele quem lhes dá as irónicas boas-vindas à “colónia de férias”. Nem todos têm participações individuais em palco. Porque não querem ou porque não podem. Manuel Lopes, 73 anos, é um deles. “Estou a gostar daquilo, mas não posso dizer nada assim de repente. Sou esquecido. Sou ‘Maria vai com os outros’”, diz.

Uma carta a Salazar

Manuel não é esquecido. Manuel ainda sofre as consequências da explosão de que foi vítima em Angola, em Janeiro de 1964, e que o faz falar devagar, com muitas pausas, à procura das palavras, das recordações que lhe escapam. “Nunca mais fiquei bem. Apanhei um traumatismo crânio-encefálico e ainda hoje faço tratamento à amnésia”, conta.

Diz que foi para Angola “no pior barco que havia no mercado, o Niassa”. No espectáculo da Casa da Música, há cenas que relatam a travessia, assentes nas memórias de animados jogos de cartas, mas Manuel Lopes diz que, na sua viagem, iam todos “desanimados”. Assim que desembarcou, foi mandado para o mato, para uma zona difícil. “Mal saíamos do acampamento, éramos logo atacados. Nem casernas tínhamos, eram barracas de campanha.” Foi ferido na explosão de uma mina anticarro, quando o grupo em que seguia ia abastecer-se de água num riacho próximo. Aponta para o corpo, enquanto relata: “Parti este braço, esta orelha, o corpo todo, a cabeça toda atrás. Estive setenta e tal dias em coma. Acordei já em Lisboa, não sei quando fui para lá ou como. Sou de Braga e na basílica do Sameiro chegaram a rezar missas por minha alma, porque constou que eu tinha morrido.”

Manuel Lopes sobreviveu e, por empenho do pai, que até escreveu a Salazar, conseguiu um emprego como contínuo, que manteve até à reforma. Apesar dos problemas de memória, Manuel relata a troca de correspondência como se a carta do ditador português estivesse à sua frente. “O meu pai soube daquela vaga de contínuo e arranjou uma pessoa que soubesse escrever uma carta para Salazar. Ele respondeu, dizendo, para o meu pai: ‘Excelentíssimo senhor João Lopes, é verdade que o vosso filho teve este acidente, no Norte de Angola, mas dos aleijões sofridos está curado. Em virtude do traumatismo crânio-encefálico que apanhou, queira aceitar o lugar de contínuo na Escola Industrial e Comercial de Espinho.”

Provavelmente, nenhum dos homens da ADFA que participam em Curado partilharia desta afirmação de António de Oliveira Salazar sobre a cura. A cura ainda se vai fazendo. Até para os elementos da ADFA que não foram à guerra, como Rui Costa, de 55 anos, que sofreu um AVC dez anos depois de ter passado pelas forças da NATO em Itália, ou Maria João Vasconcelos, de 39 anos, filha de um ex-combatente, que sofre da doença de Wilson. Ambos participam em Curado. Para Joaquim de Jesus Baptista, 68 anos, a cura parece mais longe sempre que o tempo piora. “Continuo a ter muitas dificuldades. Se estiver nevoeiro, à noite, no outro dia não estou bem”, diz.

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Durante os ensaios. O espectáculo Curado está integrado no ciclo Música & Revolução

 "Só vim ver se estavas completo"

A culpa é dos pulmões. E a culpa de os pulmões não funcionarem como deviam é do acidente de guerra que sofreu em Moçambique, em 1969, já depois de ter passado por Angola, durante cinco meses. “Estávamos a regressar de Mueda, uma das zonas mais abrangidas pela guerra, e eu e a minha equipas vínhamos no rebenta-minas, a viatura que seguia à frente da coluna. Tive um pressentimento de que me iria acontecer alguma coisa e, uns minutos antes da explosão, tirei o cinturão de cartucheiras e tudo o que podia rebentar. Quando pisámos a mina anticarro, fui projectado, desmaiei e só me lembro de alguém me bater na cara e dizer: ‘Este morreu.’”

Joaquim lembra-se que sangrava de um ouvido e que um “zumbido tremendo” tomou conta da sua cabeça. Quiseram levá-lo para o acampamento que tinha deixado há pouco, mas ele recusou, e preferiu fazer os 600 quilómetros até ao hospital. Só quatro meses depois da explosão descobriu, finalmente, que tinha os pulmões perfurados. Já tinha perdido 20 quilos e o cansaço era tanto que dormia sempre que podia.

Esteve quatro meses internado na capital moçambicana e mais três anos no Hospital Militar de Lisboa. A cura física e psicológica, longa, solitária, para toda a vida, estava só a começar. “Quando regressámos, ninguém nos queria ouvir falar. Nem nos perguntavam sobre aquilo. Na minha família, a única coisa de que me lembro é de o meu pai ir ao meu quarto, na noite em que cheguei, ver se eu tinha braços e pernas. Disso não me esqueço. Eu acordei e ele disse: ‘Só vim ver se estavas completo.’”

Mário Fernandes Lopes, 65 anos, regressou “completo” da guerra em Angola, para onde fora enviado com apenas 20 anos, em 1969. Quando o virem em palco, notarão que lhe falta um braço, mas isso foram perdas de outras guerras — foi amputado durante um acidente ferroviário, em 2000. Nessa altura, os colegas da ADFA não o deixaram sentir-se “um coitadinho” e é isso que ainda exige de quem o rodeia. “Esta foi a minha maior guerra, mas nesta já tive apoio psicológico dos camaradas”, diz.

Da guerra, confessa, viu pouco. Puseram-no na secretaria e acabou por regressar a Lisboa, com os ligamentos das pernas desfeitos, depois de o condutor da viatura em que ia “buscar o correio e hortaliças” se despistar. “Não cheguei a participar em combates. Mas as pessoas não sabiam para o que iam. Íamos no escuro. E lá, cada qual salvava a sua pele. Eram as minas, as granadas, os acidentes, uma série de coisas”, diz.

Mário Fernandes Lopes teve o que entre os combatentes se chama “uma guerra boa”. Mário Santos Silva, 66 anos, também. Para ele, o mais duro foi mesmo o momento da partida para África. Tinham-se passado 14 meses desde que fizera a recruta. Estava convencido de que já não o iam chamar para a guerra, porque, ao contrário de muitos colegas, não fora mobilizado. Ficou em casa, na Maia, a ver os resultados da guerra longínqua. “Não se falava da guerra, era um tabu, mas cheguei a assistir ao regresso de três colegas num caixão. Isso dava arrepios. Eu pensava: ‘Amanhã vou ser eu que vou aparecer aqui, assim, no caixão’”, recorda.

A chamada para Moçambique, em Novembro de 1970, foi uma tortura. Em Moçambique, contudo, as coisas podiam ter corrido pior. Colocaram-no no batalhão de transmissões, era rádio-telegrafista, e diz que a sua guerra foi “de arame farpado”. “Estávamos protegidos por arame farpado. Não perdi amigos e até tive a sorte de poder visitar uns tios, na Beira, ao fim de um ano, durante um mês de licença.”

Ainda assim, Mário Santos Silva diz que regressou “meio marado da cabeça”. As saudades da família, as bebedeiras “para esquecer” e os “abusos” que se arrepende de ter cometido contribuíram para isso. “Fiz coisas que não devia ter feito, sabe? Ali era a lei do mais forte. És negro, eu quero, posso e mando e tens de fazer o que eu quero. Sobretudo com as mulheres. A gente usava e abusava e abusava. Hoje reconheço que não devia ter feito muita coisa”, diz.

Mário é quase o único que fala deste lado da guerra. O dos abusos cometidos pelos soldados portugueses. “Era a guerra”, diz João Baptista, desculpando-se antecipadamente de algumas das fotos que guarda no álbum de memórias de Moçambique. Há um homem negro morto no chão. Há uma cabeça decepada espetada numa estaca. “Não devíamos fazer isto, mas naqueles momentos a raiva era tanta…”

Em Curado, esta parte da guerra fica de fora. Mas há minas que rebentam, soldados que morrem — incluindo Curado — e o desespero das famílias. Isidro Fidalgo, 67 anos, não sabe se vai aguentar. Tem ido aos ensaios, mas, ao contrário dos outros, diz que tanto reavivar das memórias não lhe está a fazer bem. “Se me pedem para vestir uma farda, temo que não consiga encaixar uma coisa dessas”, diz.

Isidro teve uma “guerra difícil”, carregada de traumas de que não se libertou. O que viveu na Guiné-Bissau, onde esteve entre 1968 e 1969, ainda o persegue e diz que só à custa de não falar e não pensar é que vai levando a vida para a frente. Num dos exercícios dos ensaios, Tim Yealland sugeriu aos homens da ADFA que dissessem o nome de um companheiro morto na guerra. Na sala ecoaram gritos de “Gervásio”, “Rodrigues”, “Saraiva”. Isidro, incomodado, ficou calado. “É muito forte?”, perguntou-lhe Jorge Prendas. “É. Estou muito apreensivo.”

Na guerra de Isidro, também entra o rebentamento de uma mina anticarro, mas não foi essa que o fez regressar a Portugal, apesar dos vários ferimentos no corpo e da perda total de audição no ouvido esquerdo, que só descobriria muito depois. “Foi muito cedo e eu não encarei muito bem aquilo”, diz, sobre o acidente. Se tivesse vindo embora naquela altura, talvez tudo tivesse sido mais fácil, mas Isidro continuou na Guiné. E mesmo no depósito de géneros, onde o colocaram algum tempo depois, as coisas não ficaram mais fáceis. “Enquanto estive no aquartelamento tivemos 82 ataques. Quase dia sim, dia não. Entretanto, aconteceram coisas que não quero estar a desenvolver, incluindo a morte estúpida de dois amigos. Não consigo falar disso”, diz.

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Caixões até ao tecto

Isidro só descobriu a surdez durante uma licença, quando visitava a família, em Portugal. Voltou para a Guiné, apenas para que o médico que o recebeu em Bissau, com os relatórios recolhidos em casa, o reenviasse para Lisboa. Aí, as coisas não melhoraram.

Uma noite, incapaz de dormir pelo gemer constante de um soldado amputado que acabara de chegar ao hospital, ouviu um ruído estranho que o fez assomar à janela. “Vejo camiões a entrar, uns atrás dos outros, com os faróis desligados e a andar muito devagar para não fazerem barulho. Eram umas duas da manhã e eles foram para as traseiras do hospital. Na manhã seguinte, fui à procura e já não havia nada, nem carros nem camiões. Comecei a empurrar portas e estava tudo fechado. Até que chego à igreja que lá havia e empurrei a porta. A igreja estava cheia de caixões até ao tecto. Gritei de revolta. Eles iam à noite buscá-los a Alcântara e metiam-nos ali, para ninguém os ver, antes de os enviarem para o destino. Esta imagem ficou-me para toda a vida”, diz.

A chegada de noite, a coberto da escuridão e dos olhares curiosos, é descrita por outros elementos do grupo, que chegaram feridos a Lisboa. “Nos jornais, era capaz de vir uma vez por semana o anúncio de que tinha morrido alguém em Angola, dois ou três em Moçambique, outros dois na Guiné, mas esses números não eram verdade. Eram centenas, eu vi centenas de caixões”, relata Isidro. Os números da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) apontam para a existência de 8.290 mortos em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau. Quanto aos feridos, não há números certos, mas há estimativas que apontam para a existência de 30 mil deficientes e 140 mil pessoas com distúrbios causados por stress de guerra.

Hoje diz que podia ter procurado ajuda, e houve um tempo em que o fez, mas falar incomodava-o, e desistiu. Continuou a viver assombrado por ruídos (um foguete que estourava, o guinchar brusco de um carro a travar) e não só. Durante a lua-de-mel, em casa de uma cunhada, esta entrou sem se fazer anunciar no quarto onde Isidro ainda dormitava com a mulher. “A minha mulher tocou-me e disse, olha quem está ali. Com a pouca luz que passava pelas persianas, não vi o rosto de ninguém, só vi um vulto e peguei logo num candeeiro de ferro para lhe atirar. A minha mulher acalmou-me, disse-me que era a irmã que ali estava. Chorei tanto, tanto naquele dia. A partir daqui pus de parte todo o sentimento, faço de conta que não vivi aquilo.”

O presidente da ADFA, Abel Fortuna, reconhece que reviver a guerra pode não fazer bem a todos, mas acredita que, para a maioria, acaba por ser terapêutico. “Tenho-me sentido bem com esta experiência do reviver o que aconteceu, mas é preciso algum cuidado, porque cada um de nós reage de maneira diferente.” Tim Yealland também o sente. “Estas pessoas que foram feridas há mais de 40 anos sentem que as suas histórias foram esquecidas. Para eles, esta é uma oportunidade de falar do que lhes aconteceu, quase pela primeira vez. Para algumas pessoas, tudo isto tem um sentido quase terapêutico”, diz.

Vida virada do avesso

Tal como Isidro, Abel Fortuna, 65 anos, esteve na Guiné. Chegou a Bissau em 1971 e, desde esse instante, não teve ilusões. “A população olhava-nos com grande distanciamento, com cara de: ‘O que é que estes sujeitos vêm para aqui fazer? São uns intrusos.’ Assim que pus os pés na Guiné, senti imediatamente que estava no local errado, que aquele território não tinha nada que ver com o meu país e que era um erro histórico estarmos ali”, diz.

Sete meses foram o suficiente para a vida de Abel se virar do avesso. Num domingo em que tinha pressa de regressar ao aquartelamento para jogar futebol, deparou-se com uma mina a descoberto no trilho. Não quis esperar pelos sapadores das minas e armadilhas que vinham “muito lá para trás”, na coluna militar, pensou que conseguia neutralizar sozinho o engenho. Não contou com a oxidação que trocara as voltas ao mecanismo e a mina rebentou enquanto a manuseava. “Fiquei sem as duas mãos e completamente cego”, conta.

Em Bissau, limitaram-se a dar-lhe morfina e mandaram-no para Lisboa, para que morresse junto da família. Hoje usa duas próteses onde estiveram as mãos e conseguiu recuperar parte da visão no olho direito — o único que ainda tem — graças ao aviso de outros feridos de guerra que o abordaram no hospital em Lisboa e insistiram para que vendesse a família à PIDE, se fosse preciso, mas que conseguisse uma consulta numa clínica catalã especialista em cirurgias oftalmológicas.

Abel, Isidro, Mário e Joaquim estão vivos. E, com eles, a Guerra Colonial. Essa, acredita Abel, só vai acabar quando todos os combatentes e os seus descendentes, que também sentiram na pele as marcas que os pais trouxeram de África, tiverem morrido. Até lá, diz que quer falar do que viveu sempre que o quiserem ouvir. Para que percebam a mensagem que considera ser a mais importante de todas. “Todas as guerras são injustas. Enquanto vítima de uma guerra, o que quero dizer aos jovens é que lutem pela paz, contra todas as violências, porque estas não resolvem problema nenhum.”

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