Como eles fazem as leis

Laborinho Lúcio foi ministro da Justiça há uns anos. Personalidade culta, de visão política e democrata, como poucos que, infelizmente para o povo, ocuparam e ocupam várias cadeiras do poder executivo. Fez publicar o Decreto-lei n.º 383/90, de 10 de Dezembro, onde, magistralmente, no respectivo preâmbulo, escreveu:

“ …a Administração Pública existe por e para servir o cidadão, e não para se servir dele…”.

O que se nos depara hoje, muitas vezes de modo afrontoso, hostil, versando-se as matérias nos diplomas legais na óptica de servos e não cidadãos, na óptica de legislação labiríntica, incompreensível e, ainda por cima, fabricada por encomenda e paga com facturas astronómicas sempre a escritórios de advogados que engordam o património obeso de jeito duplo: para fazer as leis e para as interpretar com profundos pareceres feitos ao sabor do patrão que as encomendou – o Governo.

Neste, pululam equipas de assessores às centenas, remunerados principescamente e cuja habilitação conhecida é esta: conhecimentos que não aportam à interpretação exigida e pouco passam de preenchimento de registos e avisos de recepção de um qualquer adjunto de escrivão.

De maneira que o Governo negoceia pareceres de milhões de euros aos que lhes fizeram as leis: metodologia de “pescadinha de rabo na boca”.

Estamos muito longe do decreto-lei de Laborinho Lúcio! E das suas intenções democráticas.

Não tenho a menor reserva de que a Lei de Limitação dos Mandatos foi imaginada para servir objectivos futuros e evidentes: o triste e caricato episódio do “de” ou do “da” foram, a meu ver, criados intencionalmente, a pensar nos “nossos autarcas” que, com tal equívoco procurado e doloso, o Governo pretendeu limitar tais mandatos. Sem os limitar: perpetuar o clientelismo, deixando instalados na margem esquerda do rio quem geria a sua margem direita. E desinteressou-se, em absoluto, não só da renovação da democracia, como entra pelos olhos dentro, como da austeridade feita princípio de vida mas para os trabalhadores.

E isso o demonstra, ante tantas dúvidas colectivas que se não tenha, em devido tempo, corrigido a Lei com apenas um artiguinho a dizer:

Artigo único: quem exerceu funções de presidente de órgãos executivos de autarquias, em quatro mandatos consecutivos, fica impedido de se candidatar às eleições seguintes.

Mas, efectivamente, os Srs. Deputados têm mais que fazer, e mais nobres tarefas, do que ocuparem algum tempo no part time da Assembleia da República.

Embora se diga que, quanto a essa lei, com outros, tive oportunidade de escrever neste jornal, que “de” e “da” são exactamente a mesma coisa, tal como, desagradado e irónico, escrevia um Coronel nas redes sociais: “presidente de merda é a mesma coisa que presidente da merda”. É.

Mas o poder político tem mais que fazer. Que lhe interessa a confusão que lhe interessa.

Tem de jantar, cear e beber uns copos nos hotéis de luxo de Lisboa com os burocratas da troika, que o contribuinte paga na sua austeridade, cozinhar secretamente mais reduções de salários e reformas, aumentar mais preços, reduzir o seu povo à obscenidade da miséria, enquanto os seus gestores e conselheiros são remunerados principescamente e, ainda por cima, com hipocrisia, afronte e desrespeito, nos pregam a correcção e justiça da baixa do salário mínimo que, por definição, já é “mínimo”. Querem-no abaixo do mínimo. Os criados da troika quando informam dos milhares que doaram por aquele relatório totalmente inútil que o Sr. Dr. Carlos Moedas apregoou na TV com prazer quase orgásmico?

A Lei de Limitação dos Mandatos dos autarcas não é exemplo único: não há lei que não venha a ser alterada, rectificada uns dias depois, uma vez que os políticos desprezam não só o povo português, como também a língua portuguesa.

O Código de Processo Penal em vigor desde 1987, já foi alterado, rectificado e ampliado dezenas de vezes, o que bem demonstra o cuidado e as convicções políticas e filosóficas de quem o aprovou e de quem o vai promulgando.

O Código de Processo Civil padeceu de tantas alterações que, num mesmo processo, até o jurista mais experiente e expedito, busca o artiguinho a aplicar aqui e outro a aplicar ali.

No Ministério das Finanças, a Lei e Decreto-Lei são os despachos e circulares, o catecismo oficial donde constam as regras dos cérebros jurídicos que são movidos por um e exclusivo objectivo: sacar os contribuintes. Há sempre uma circular sigilosa e oculta que prova que temos de pagar mais, ainda que a Lei diga que temos de pagar menos. É a hierarquia das leis e circulares, sabendo nós que estas valem muito menos que aquelas. São ordens para se cumprir no país do respeitinho

O PGR foi “chamado” (como se fosse um assessor deles!) para se pronunciar sobre certos projectos de lei. Com aquele toque fino de beirão, viu-se obrigado a apelar aos Srs. Deputados para tirarem “vírgulas” e meterem “vírgulas”, onde estavam a mais e estavam a menos.

Pelos meados de 2012, um cronista do semanário Expresso sob o título de “O povinho não precisa de gramática” contava a história verídica que sucedera com Sophia de Melo Breyner, enquanto deputada. Esta, na AR, observou que certo diploma tinha erros de gramática, mas um dos deputados da maioria retorquiu sabiamente: “O povo não precisa de gramática”. Não precisa, não, precisa de português que se entenda, que o respeite e de cultura que os derrube, como diria Laborinho Lúcio no tal preâmbulo, seja tratado como cidadão, não servo da gleba.

O que o povo precisa é que um memorando de entendimento, alterado diversas vezes, aporte ao seu entendimento, em português correcto e não se dissimule de única lei sem rosto, com erros de gramática e de política.

Isso é que o Povo precisa.

E de gramática. Portuguesa que, em português, é que todos nos entendemos.

Com este ou outro governo!

O autor é procurador-geral adjunto 

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