Câmara da Vidigueira destrói armazém onde alojou famílias ciganas sem as avisar

Mais de dois anos depois de alojar cerca de 70 pessoas numa construção ilegal feita pela própria autarquia, câmara faz a demolição do espaço. Famílias tinham abandonado o local depois de rixa e acusam autarquia de racismo.

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O armazém onde viviam cerca de 70 pessoas foi demolido António Carrapato
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O terreno foi revirado. Aqui já ninguém consegue montar um acampamento. No barracão ao centro, há pedaços de betão destruídos e, debaixo deles, roupa, brinquedos, grades de cerveja, malas, receitas médicas, um electrodoméstico que parece uma máquina de lavar, cobertores. Há escombros.

“Esta saia era nova, nem cheguei a estrear!”, diz Patrícia, ao tirar debaixo de um bloco de betão aquilo que se transformou num pedaço de tecido branco. Helena e Patrícia percorrem o enorme armazém pulando entre os blocos de cimento e juntando, em montes, aquilo que ficou para trás. É, dizem, a primeira vez que regressam ao local em mais de 20 dias.

A 13 de Junho houve uma rixa entre as duas famílias de etnia cigana, os Azul e os Cabeça, que viviam no chamado Parque de Estágio, à saída da Vidigueira (concelho de Beja). Vários ramos destas duas famílias com cerca de 70 pessoas, adultos e crianças, viviam aqui em “habitações” mandadas construir pela Câmara Municipal da Vidigueira.

Nesse mesmo 13 de Junho, as duas famílias abandonaram o local temporariamente com o objectivo de acalmar os ânimos depois de uma zanga violenta que envolveu tiros. A ideia era voltarem, mas quatro dias depois, dia 17, a autarquia já tinha contratado os serviços de uma empresa para demolir o armazém. Os tractores e caterpillars de José Alexandre chegaram de manhã cedo e pelas 13h o serviço estava terminado, diz ao PÚBLICO o empresário. Ordem? “Demolição.” Com carácter de urgência. “O presidente estava lá, a gente realizou o serviço na presença deles todos”, conta José Alexandre em sua casa, uma moradia que se avista da estrada do Parque de Estágio. “Foram eles [autarquia] que mandaram empurrar aquele lixo lá para dentro [do armazém]. Mandaram ripar a área à frente para criar instabilidade de terreno para que eles não pudessem voltar para ali.”

Em frente ao armazém em escombros, Manuel Azul acusa: “É racismo contra o cigano. Ele [o presidente da câmara] aproveitou a gente sair e derrubou tudo.” Os Cabeça foram para Sines; os Azul estão em Moura, têm lá uma familiar que lhes deu abrigo. Manuel e a mulher, Helena, queixam-se de que ficaram sem nada, inclusivamente sem o recheio da casa – electrodomésticos, roupa de casa, roupa familiar, enxovais para as filhas, no valor que estimam em cinco mil euros. “Ele podia ter avisado: ‘Tirem o que têm a tirar.’ Dava um prazo.” As famílias queixam-se ainda de não serem recebidas pela autarquia e de estarem sem abrigo. “Ao menos que nos dêem uma indemnização ou um bocado de terra para a gente ficar.”

O Alto Comissariado para as Migrações, por email, diz estar a acompanhar de perto o caso e que estão a ser "desenvolvidos todos os esforços para assegurar o abrigo dos membros da comunidade cigana, que se encontram numa situação de risco (mãe grávida e crianças)".

O presidente da Câmara Municipal da Vidigueira, Manuel Narra, justifica a ordem de demolição com o “cumprimento da legalidade”. Antes de se mudarem para o Parque de Estágio, as famílias viviam num acampamento nas ruínas do castelo da Vidigueira, local onde estavam há 30 anos, diz Manuel Azul. Em “finais de 2011, início de 2012”, a autarquia transferiu-as para uma zona a cerca de três quilómetros do centro, no âmbito de um programa chamado Projecto Parque de Estágio, que tinha como objectivo a longo prazo realojar as famílias na malha urbana, com acompanhamento de técnicos, explica o autarca ao PÚBLICO por telefone. “Transferimos cerca de 15 famílias, fizemos obras para que tivessem algumas condições – não eram bem habitações, não era a tradicional habitação que o resto da comunidade está habituada a ter”, diz o autarca.

O armazém dividiu-se em fracções, que correspondiam às habitações de cada unidade familiar, mas não havia casa-de-banho, nem cozinha, nem água canalizada ou sistema de esgotos: “Isto era mais para cavalos do que para as pessoas”, queixa-se um dos moradores. Havia uma casa-de-banho comum no exterior. Comenta o autarca: “Sendo uma comunidade com hábitos sem muita interligação com o resto da comunidade, houve um conjunto de competências que os nossos técnicos iriam transmitindo.” A ideia era passar as famílias para a vila quando os “técnicos nos dissessem que estavam em condições de respeitar a vizinhança”. Segundo o presidente, não conseguiram encontrar ninguém disposto a alugar casas (excepção para uma casa alugada a uma única família).

Mas em 2012 os deputados do PS, na oposição, acusa o autarca comunista, avançaram com uma denúncia pública contra as construções no Parque de Estágio. O vereador do PS José Miguel Almeida não confirma, no entanto, contactado pelo PÚBLICO, que a denúncia tenha sido feita pelo seu partido. “Fomos arrastando o problema porque a nossa intenção era colocar toda a gente na malha urbana quando fosse possível”, justifica Narra quando questionado sobre o porquê da demolição nesta altura. “O município não tem capacidade financeira para realojar as famílias todas, iríamos fazendo de forma faseada – ninguém esperaria que fizéssemos em dois meses, podia durar dois, quatro anos.”

Manuel Narra acusa as famílias de terem destruído o espaço durante a sua zanga a 13 de Junho e queixa-se de que o custo de recuperação seria muito alto. Face a isso, decidiu mandar demolir o armazém, seguindo o parecer da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) que deu origem à ordem da Inspecção-Geral das Finanças para “repor a legalidade”.

“Vamos à procura onde, se eles desapareceram?”, responde o autarca quando lhe perguntamos se não tem intenção de contactar as famílias para as realojar, apesar de, na mesma conversa, sublinhar que durante estes dias as famílias têm sido apoiadas pelos técnicos da câmara e da Segurança Social. E o mesmo diz sobre não ter avisado da demolição -  não havia forma de as contactar. Já em relação aos bens, acusa: “O que havia era um monte de escombros porque partiram tudo.” Havia “algumas arcas [frigoríficas] que se encontram nos estaleiros da câmara”,  mas “algumas famílias já foram buscar os pertences”.

O autarca diz que o poder central, nomeadamente o Ministério da Segurança Social, tem “responsabilidades no realojamento das pessoas”, que gostaria de discutir o assunto com responsáveis, mas que ainda não contactou ninguém para esse efeito.

Narra justifica o facto de ter mandado revolver o terreno à volta do casão: “Naturalmente que teve de ser protegido. Se não era terreno considerado de habitação ou de permanência de pessoas, não podíamos deixar criar outro bairro da lata, estaríamos a infligir as regras impostas pela CCDR.”

Discriminação contra os ciganos? “No nosso concelho, os ciganos são discriminados positivamente”, responde o autarca. “Receberam muito mais ao longo destes anos do que aquilo que dão.”

Em Fevereiro de 2011, a organização não-governamental European Roma Rights Centre (ERRC) fez uma queixa denunciando as condições precárias em que estas duas famílias viviam e o facto de a autarquia lhes ter cortado a água quando ainda viviam no castelo. A organização pedia ainda à autarquia para actuar “urgentemente no realojamento da comunidade em habitações integradas, em conformidade com as obrigações de Portugal no respeito da Lei Internacional do direito a habitação adequada”.

O projecto do Parque de Estágios, estimado em 100 mil euros, orçamento calculado com a despesa de disponibilização de técnicos, está agora suspenso na Vidigueira, “até termos esta situação resolvida”, mas vai continuar nas outras freguesias, Vila de Frades e Pedrógão, garante Manuel Narra.

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