Bento de Jesus Caraça: recusar, resistir, mobilizar

As advertências de Bento Caraça deveriam constituir motivo de reflexão intelectual e cívica para estimular reformas urgentes a fim de recuperar o país.

A rejeição do pensamento único, implantado em todos os domínios, é uma das afirmações da autonomia intelectual e cívica do homem, na plenitude das suas liberdades e direitos fundamentais. Tanto maior é a força e o significado da rejeição quanto ela resulta de um imperativo de consciência em luta contra o fantasma do medo incutido nas homilias dos profetas da desgraça que, em nome da prudência e estabilidade social, anunciam sempre o pior como se estivéssemos às portas do fim do mundo.

A vida de Bento Caraça (1901-1948) indissoluvelmente ligada à sua obra pedagógica e à sua intervenção cívica, nos anos negros do consulado de Salazar, pode resumir-se em três verbos: recusar, resistir, mobilizar. Recusar a ditadura, resistir à prepotência e ao arbítrio. Mobilizar vontades dispersas para ultrapassar o isolamento e restabelecer um Estado de direito, com as liberdades e garantias constitucionais que asseguram as estruturas de um regime democrático.

Mestre de matemática e de matemáticos, na Universidade Técnica de Lisboa, atingiu aos 28 anos o cume da carreira. Contudo, não se limitou a ficar, como tantos, na torre de marfim de uma cátedra. Exerceu influência decisiva na sua geração, na geração anterior à sua e nas gerações que lhe sucederam. Tomou parte nas lutas democráticas, sendo vítima de todas as perseguições, entre as quais a expulsão do ensino universitário.

Uma das obras mais relevantes que o país deve a Bento Caraça foi a criação e direção da Biblioteca Cosmos. A partir de 1941 a 1948 com a colaboração de figuras de várias tendências políticas e diferentes opções religiosas, editou mais de uma centena de pequenos livros que permitiram a divulgação e, por vezes, o aprofundamento de temas nucleares no âmbito das ciências e técnicas, da economia e da gestão, das filosofias e religiões, das artes e letras. Este conjunto tão diversificado abrangeu – dentro das limitações impostas pela repressão da Censura e da polícia política –, dentro dos limites do possível, a análise de alguns problemas contemporâneos.

Tal como os Cadernos de Iniciação Cultural de Agostinho da Silva, os Cadernos Inquérito lançados por Eduardo Salgueiro e os opúsculos da Seara Nova dirigidos por Câmara Reys, António Sérgio e Rodrigues Lapa, a Biblioteca Cosmos de Bento Caraça representou um contributo fundamental para a cultura portuguesa e a sua aproximação com as solicitações da Europa.

Para os jovens e os próprios adultos, numa linguagem clara e acessível, promoveu a difusão e o conhecimento dos grandes temas nacionais e universais. Atribuía à cultura a descoberta do homem e do mundo num impulso contínuo de procura da liberdade. Grande parte da minha formação, que decorreu do final dos anos 40 e através da década de 50, assentou na Biblioteca Cosmos e também nos ensinamentos das outras coleções de textos exemplares.

Houve, nas últimas décadas, novas e irrecusáveis aquisições científicas, filosóficas, literárias, artísticas e históricas em todas as áreas abrangidas na Biblioteca Cosmos. Contudo, permanece vivo o sentido de abertura e pluralismo de opinião e de crítica que inspirou o projeto e se assinala nos volumes que o integram.

A memória de Bento Caraça vai ser homenageada hoje (19 de Fevereiro) em Lisboa, às 18 horas, na Fundação Mário Soares e presidida por Mário Soares, um dos raros sobreviventes da ação desenvolvida por Bento Caraça, no MUD e outros movimentos antifascistas.

O legado de Bento Caraça tem como linha de rumo sempre oportuna e atual: "Sem cultura, não pode haver liberdade e, sem liberdade, não pode haver cultura". Todavia, a sua conceção é mais abrangente: "A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista: físico, intelectual, moral e artístico; a conquista da liberdade, a cultura integral do indivíduo".

Predomina, contudo, uma norma de conduta, a todos os títulos notável, e que acentuou ainda maior dimensão humanista no magistério de Bento Caraça. No edifício do Instituto Superior de Economia e de Gestão (ISEG e antigo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras), onde foi professor catedrático, encontra-se inscrita uma das afirmações lapidares de Bento Caraça: "Se não receio o erro, é porque estou sempre pronto a corrigi-lo".

Palavas que representam uma regra de ouro para transpor o medo que intensifica a inércia, a indecisão, a falta de transparência, as meias palavras, os jogos do poder, a opacidade dos negócios, a paz podre.

Perante os bloqueios às mudanças, a falta de coragem e de ousadia, as ameaças da corrida acelerada para o abismo, as advertências de Bento Caraça deveriam constituir motivo de reflexão intelectual e cívica. Para estimular coragem e determinação, repelir certezas absolutas, o prolongamento de impasses e a ausência de alternativas que promovam reformas urgentes para recuperar o país. Dia a dia cada vez mais destruído nas áreas da educação, da saúde, da segurança social, da economia, da cultura, do proficiente e indispensável funcionamento da justiça.

Jornalista e investigador, membro da Academia das Ciências

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