As coerências em saúde: entre a comédia e a tragédia

A liberdade e a concorrência na saúde não são sinónimos de injustiça, inacessibilidade e desnatação se o Estado souber ser auditor, regulador e garante.

Há semanas, o PCP anunciou, com notável transparência, que, se fosse poder, nacionalizaria o Grupo Espírito Santo Saúde.

Nos tempos que correm, é raro, no panorama político português, haver uma coerência ideológica tão marcante. A apropriação pelo Estado dos meios de produção, em especial dos ditos estratégicos, é um dos itens do ideário marxista. A prestação de cuidados de saúde deveria ser um monopólio do Estado, tal como acontecia nos países comunistas.

Neste país, que regista uma alienante iliteracia política, não proliferam ideias, mas o estar-se e ser-se conforme as circunstâncias. Pode ser-se liberal, socialista, comunista, fascista, capitalista, ao mesmo tempo e na mesma pessoa. Foi assim que nasceu, recentemente, uma geração de marxistas de direita e de capitalistas de esquerda, que têm pulado pelos corredores do poder e que, de uma maneira ou de outra, conduziram o país ao estado em que se encontra.

Na área da saúde, essa tipologia de personagens, quando se refere ao setor privado, apresenta faces assimétricas. Começa por dizer nada ter contra os privados, mostrando uma face liberal. Contudo, logo começa a atacá-lo e a defender um Serviço Nacional de Saúde coletivizado, na mão do Estado e no qual não se admite a concorrência ou a liberdade de escolha revelando uma outra face: marxista, coletivista e antimercado. Numa analogia teatral, restaria saber qual das faces seria a tragédia e/ou a comédia….

Alguns pertencem ao Governo atual, outros andaram por Governos anteriores – são o chamado arco do poder!

Quem assistiu recentemente ao desempenho televisivo na SIC Notícias, sobre o SNS, viu o retrato em família deste modo de estar. A não ser o dr. Luís Filipe Pereira, ninguém transmitiu uma visão reformista – todos os outros defenderam um sistema de saúde estático, que não acompanha os tempos, coletivista e centralizador. Não falaram em liberdade de escolha, em concorrência, em respeito pelos doentes, mas sim em tutelarem o desejo dos doentes e na gestão feita à tesoura e bisturi. Até ao divergirem, não souberam olhar para o seu passado, já que todos governaram acorrentados, o que os torna iguais uns aos outros. Todos, com uma exceção, se apresentaram como donos de um serviço e não como ministros ou ex-ministros de um sistema. O objetivo foi atacar o setor privado, dizendo que nada têm contra ele.

Dizem isso como salvaguarda política porque sabem que os ventos sopram noutro sentido e aquilo que foi um imperativo da democracia – trazer o Estado social europeu para dentro do país – só se pode manter vivo se esse Estado deixar de ser tomado pelos interesses políticos, corporativos e económicos e passar a ser de livre iniciativa, sem comprometer o direito à saúde.

A liberdade e a concorrência na saúde não são sinónimos de injustiça, inacessibilidade e desnatação se o Estado souber ser auditor, regulador e garante isto é, se for um Estado moderno e reformista.

Apesar de afirmarem que o setor privado não faz formação – o que não é verdade que só tem serviços de urgência básica ou que não trata patologia diferenciada este continuará a crescer porque os doentes, seus clientes, querem ser livres, querem poder escolher e não aceitam tutelas de quem está longe e vive nos corredores da burocracia.

Os hospitais privados tratam patologia diferenciada e são preferidos por muitos que publicamente dizem uma coisa para o povo e assumem outra atitude quando o problema lhes diz respeito.

O setor privado é mais barato e mais seria se lhe permitissem ter escala. Basta observar a gestão privada nas parcerias público-privadas, onde, mesmo inibida de procedimentos de gestão livre, consegue níveis de custos 25% inferiores a hospitais públicos congéneres. E tudo isto fazendo ensino, promovendo investigação e registando níveis de qualidade e satisfação dos doentes superiores à dos hospitais de gestão pública.

O que assustou naquele programa, em formato celebrativo, foi a acomodação de alguns dos presentes altamente qualificados, pessoas de bem e a quem o SNS muito deve – à situação de acorrentados de um sistema estático, confundindo administração mais rigorosa com reformas e vivendo de mitos e glórias passadas.

Se algum mérito teve este programa, foi ter permitido aos portugueses compreender melhor as razões das semelhanças entre os sucessivos Governos.

Ali tornou-se claro que só o PCP é coerente e que, afinal, os supostos defensores de uma sociedade livre continuam, em relação à hospitalização, a querer manter um Estado detentor de todos os meios de produção e a ver no setor privado da Saúde uma espécie de corpo estranho, um inimigo explorador do Estado e dos doentes.

Os hospitais privados têm ganho força e visibilidade porque atuam com transparência, têm qualidade e são seguros. Suportam concorrências desleais de um setor social que vive na órbita do poder, desenvolvem-se porque os cidadãos reconhecem as suas virtudes, investem e correm riscos. Também faturam serviços ao Estado, é verdade, mas faturam muito mais aos cidadãos que pagam impostos, já que o dinheiro que daí advém, não sendo bem gerido, os obriga a gastar, do seu bolso, em seguros complementares, subsistemas e taxas moderadoras.

Os políticos não podem ter duas faces. Não podem ter uma atuação bipolar: ser marxistas de direita às segundas, terças e quartas e capitalistas de esquerda às quintas, sextas, sábados e domingos.

Se são marxistas, sigam o exemplo do PCP: nacionalizem a iniciativa privada na saúde. Se exercem o poder em nome de uma sociedade livre, sigam os exemplos europeus do sector da Saúde e vejam no setor privado um aliado para fornecer, a todos, uma saúde com cobertura universal e tendencialmente gratuita. É isto que espera o Serviço Nacional de Saúde democrático…

Presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP)

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