A vitória do novo sobre o velho

Tempos houve em que os mercados eram os da Ribeira ou do Bolhão...

“O 25 de Abril foi um milagre que nos aconteceu”, dizia ontem uma senhora alentejana na televisão. Apesar de não querer afastar a presença divina na génese da queda do regime, a verdade é que o 25 de Abril de 1974 foi a vitória dos capitães sobre os generais. O que, temos de convir, não deixa de ser um milagre.

Como foi igualmente um milagre, tudo aquilo que provocou: a vitória do novo sobre o velho, da liberdade sobre o medo. A vitória do movimento sobre a imobilidade, da responsabilidade individual sobre a menoridade cívica. No fundo, a vitória de cada um de nós sobre um Estado repressivo, nas mãos de uma corja mais ou menos bem-apessoada.

Mas parece evidente que os milagres não transformam tudo o que existia anteriormente. Embora a Bíblia não se debruce sobre este aspecto, estou em crer que o cego que passou a ver ou o paralítico que passou a andar não deixaram de ser as pessoas mesquinhas ou meramente limitadas que eram antes dos ditos milagres acontecerem. Só pediram para ver ou andar e o seu desejo foi-lhes concedido. Quanto ao resto, ficou tudo na mesma.

Nós, portugueses, em consequência daquela redentora ópera matinal de tanques e chaimites, não deixámos, assim, de ser subservientes e timoratos. Por vezes, sensatos e inventivos. Mas, muitas vezes, manhosos e invejosos. A nossa pequenez não resultava só da proeminência da corja que vivia dela e a alimentava. Lamentavelmente, não passámos a ser frontais e ousados, ou esforçados e generosos ou, ainda, tolerantes pelo facto de a ditadura ter sido derrubada. O milagre restituiu-nos a liberdade, não nos concedeu a qualidade.

A defesa do “respeitinho” pelas autoridades e instituições e o consequente apoucamento das nossas personalidades e aspirações não era unicamente uma característica e uma consequência da ditadura. Na verdade, o princípio de que “o respeitinho é muito bonito” já tinha sido amplamente cultivado durante a 1.ª República e a Monarquia, mesmo constitucional, como forma de limitar a liberdade de expressão dos cidadãos. E, 40 anos após o milagre, pode dizer-se que esta nossa tacanhez continua a vicejar, qual erva daninha. Parece estar-nos no sangue.

Mas, felizmente, “água mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e, hoje em dia, não precisamos de milagres para que a nossa liberdade vença a nossa pequenez. Quando, há uns meses, um comentador político afirmou, numa entrevista, “nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva”, o visado sentiu-se ofendido, institucional e pessoalmente. Como é normal num pais pequenito como é o nosso.

Queixou-se criminalmente porque desejaria que, em nome do “respeitinho”, o autor de tal afirmação pagasse caro a ousadia. E, no entanto, o Ministério Público arquivou o processo, considerando que não havia qualquer crime.

Poderia estar em causa um indelicadeza ou mesmo uma grosseria, mas, tal como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem, reiteradamente afirmado, “a liberdade de expressão é válida não apenas para os juízos favoráveis, inofensivos ou indiferentes, mas também para os que ferem, chocam ou incomodam. Estas são as exigências do pluralismo, da tolerância e do espírito de abertura, sem os quais não há sociedade democrática. Designadamente no contexto do debate politico, as figuras públicas devem saber tolerar as palavras contundentes e a critica mordaz”.

E, por isso mesmo, considerou o Ministério Público que, mesmo entendendo que o comentador tinha pretendido “manifestar a sua desconsideração pelo desempenho politico do professor Aníbal Cavaco Silva, enquanto Presidente da República, a verdade é que não é exigível, no actual sistema político democrático, que tenha consideração por tal desempenho, sendo que a liberdade de expressão lhe permite manifestá-lo”. E, acrescentamos, não tem de o fazer com “respeitinho”.

Passados 40 anos sobre aquele dia miraculoso, o mundo em que vivemos tornou-se mil vezes mais complexo, fascinante e perigoso. Há 40 anos, por exemplo, os mercados que conhecíamos e frequentávamos eram os da Ribeira ou do Bolhão. Agora, não fazemos ideia onde se localizam os mercados de que tanto se fala e só sabemos que nós não somos mais do que uma míseras mercadorias.

E, apesar disso e por isso, continuam actuais as palavras de António Maria Fontes Pereira de Melo proferidas na Câmara dos Deputados, em Junho de 1849: “Da imprensa, não se temem senão os homens que não têm uma consciência pura, os hipócritas, as mediocridades, os tiranetes, os administradores incapazes, a polícia que fica sem ter que fazer, os que faltam aos seus deveres, aqueles, numa palavra, que têm mais a recear dos ataques da imprensa do que a aplaudirem-se dos seus elogios”.

Se valeu a pena o 25 de Abril? A pergunta é absurda, mas tem uma resposta à altura. Claro que valeu: ao menos, podemos chamar palhaços aos que nos governam e não temos medo de ir presos.

Advogado, ftmota@netcabo.pt

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