A reforma do Estado-administração

Não há reforma sem uma profunda recomposição das missões e estrutura do Governo central.

Os sistemas político-administrativos do território deixaram de ser uma variável exógena do processo mais geral de modernização das instituições políticas.

No século XXI, a “tecnologia política” do Estado-administração está sujeita a uma pressão e obsolescência constantes se pensarmos, por exemplo, nos movimentos de globalização, de integração regional supranacional e de descentralização infranacional, no conjunto, aquilo que hoje a literatura designa como processos de “governação multiníveis”. Agora que se fala tanto em reforma do Estado, deixo aqui alguns princípios gerais que deverão informar a reforma do Estado-administração.

1. Não há reforma sem uma profunda recomposição das missões e estrutura do Governo central, cabendo-lhe desempenhar, essencialmente, funções prospectivas, normativas, regulatórias, inspectivas e contratuais e, dessa forma, acautelar, também, o excessivo pendor corporativo das estruturas ministeriais.

2. Não há reforma sem a formação de um “Governo policontextual”, isto é, um Governo que considere as leis-quadro, o sistema de planeamento, os orçamentos de base zero e os contratos-programa como instrumentos privilegiados de enquadramento da administração pública, em especial, de uma arquitectura policêntrica para a administração do território que, neste Governo de contexto, se tornaria a principal coluna executiva do país.

3. Não há reforma se não investirmos mais na “delimitação do interesse público”, na discriminação positiva dos mais desfavorecidos, na organização dos interesses difusos e na economicidade das formas organizativas desse mesmo interesse público, isto é, em modos inovadores de administrar bens comuns e bens públicos.

4. Não há reforma se insistirmos na confusão analítica entre cliente e cidadão, aceitando com ligeireza que os métodos e as técnicas de gestão se possam sobrepor e substituir às deliberações políticas do espaço público administrativo e territorial; hoje em dia, e cada vez mais, a percepção do cidadão não confunde o funcionamento da administração com a justeza e a justiça das políticas públicas locais e regionais.

5. Não há reforma que seja independente do processo de crescimento económico, isto é, uma política económica de “stop and go” não pode converter a política de coesão territorial em instrumento conjuntural de gestão da procura agregada, sob pena de “descontinuarmos” a política regional e uma questão de regionalização do território se transformar num problema mais sério de regionalismo político.

6. Não há reforma se desistirmos de acreditar ou certificar as “organizações de interesses”, associativas ou outras, do lado da procura; trata-se de dar conteúdo genuíno à democracia participativa e evitar a manipulação mediática e partidária que só a pressão da procura e um verdadeiro contencioso de responsabilidade podem acautelar.

7. Não há reforma sem um grande esforço de modernização político-administrativa ao nível intermédio de administração regional; esta nova racionalidade territorial é a trave mestra para reformar as administrações central e local e relocalizar as suas missões e funções, ao mesmo tempo que impede que a administração periférica do Estado seja facilmente capturada pela implantação territorial dos aparelhos partidários e respectivas clientelas e sindicatos de voto.

8. Não há reforma sem um equilíbrio saudável entre jurisdições fixas no território, autarquias e seus derivados, e jurisdições funcionais correspondentes à “geometria variável dos interesses”, mais formatadas as primeiras e mais compreensivas as segundas; é preciso criar instâncias de concertação acreditadas entre os dois níveis de jurisdição.

9. Não há reforma sem um equilíbrio harmonioso entre as várias formas e dispositivos de administração pública, desde a administração mais tradicional até às plataformas virtuais, com passagem pela administração de consulta e as várias modalidades de administração “sob contrato”, sempre com o objectivo de promover o acesso universal mas diferenciado e, assim, evitar a infoexclusão de alguns segmentos de população da sociedade sénior.

10. Não há reforma sem uma consideração ponderada da auto-estima dos agentes político-administrativos, ou seja, é um imperativo ético e deontológico rever imediatamente o estado da arte em matéria de interesse e serviço público, de delimitação e realização do bem comum, de estabilidade de carreira, do sistema de estímulos, sanções e remuneração correspondente.

Se quisermos, este decálogo do Estado-administração transporta-nos para o novo espaço público da sociedade participativa e contratual onde os conceitos da ordem velha político-administrativa de cariz hierárquico, autoritário e unilateral darão lugar, pouco a pouco, aos conceitos da ordem nova, aqueles que podem ser reportados a uma nova composição do território, desta vez mais heterárquica, comunicativa, policêntrica e policontextual da sociedade aberta. Nesta nova arquitectura societal residirão, seguramente, as áreas de maior inovação do futuro Estado-administração.

Professor catedrático na Universidade do Algarve

 

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