A lei n.º 11/2014 – afronta e inépcia legislativa

Não representa o impedimento de aposentados ou reformados de funções públicas de exercerem atividades não remuneradas, em entidades públicas, um atentado à liberdade de trabalho e de profissão (art. 47.º da Constituição)?

1. A Lei n.º 11/2014, de 6 de março, segundo a sua epígrafe “estabelece os mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e à alteração do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e revogando normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço, para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações”.

O artigo 78.º do Estatuto da Aposentação vedava aos aposentados exercer funções remuneradas ao serviço do Estado e das demais entidades públicas, salvo em determinadas condições. Agora, o art. 4.º do novo diploma retira o termo remuneradas, pelo que pode (ou poderia) entender-se que tão pouco os aposentados podem exercer funções não remuneradas, funções a título gratuito.

Todavia, a Lei n.º 11/2014 admite, nesse mesmo preceito, exceções “quando haja lei especial que o permita” ou “quando, por razões de interesse público excepcional”, os aposentados, reformados, reservistas fora de efetividade “sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pela área das Finanças e da Administração Pública”.

Por outro lado, o art. 79.º do mesmo Estatuto da Aposentação, na nova versão, prescreve que “no período que durar o exercício de funções públicas autorizadas, os aposentados, reformados, reservistas fora de efetividade e equiparados não recebem pensão ou remuneração de reserva ou equiparadas” (n.º 1) e que “o disposto nos artigos 78.º e 79.º do Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, gerais ou especiais em contrário” (n.º 2), embora se admitam ressalvas quanto a certas categorias de pessoas (n.º 3).

Mais à frente, o art. 7.º da Lei revoga todas as normas que contemplem acréscimos de tempo de serviço para efeitos de aposentação no âmbito da C.G.A. e declara especificamente revogados vários preceitos; e o art. 8.º proclama (repetindo o art. 79.º, n.º 2) que “o disposto no artigo anterior tem caráter excecional e imperativo, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, gerais ou especiais, contrárias e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos”, exceto em certos casos.

2. Qualquer leitor, jurista ou não jurista, ficará, por certo, impressionado e espantado pelo exemplo de lei tão mal feita como esta: desde a enorme designação, com as referências às sucessivas modificações legislativas que a matéria tem sofrido (mas isso não é, infelizmente, apenas aqui que tal fenómeno se vai verificando) à contradição entre a afirmação da força imperativa das suas normas e a abertura de exceções.

Perante este rendilhado legislativo – que devia envergonhar os Deputados de todos ou quase todos os partidos, que terão votado a Lei – poderá perguntar-se se a proibição de exercício de funções não remuneradas se estende aos professores das Universidades públicas jubilados e aposentados.

A resposta parece dever ser negativa.

Parece dever ser negativa, já que o Estatuto da Carreira Docente Universitária (Decreto-Lei n.º 448/79, de 13 de novembro), não menos pejado de alterações, deve ser considerado lei especial para efeito dos citados preceitos da Lei n.º 11/2014.

E esse Estatuto permite (art. 83.º) aos professores jubilados, aposentados e reformados serem orientadores de dissertações de mestrado e de teses de doutoramento; serem membros de júris para atribuição dos graus de mestre e de doutor e para a atribuição dos títulos de agregado, da habilitação e de especialista; e realizar investigação científica em instituição de ensino superior ou de investigação.

Assim como, a título excecional, lhes permite, quando se revele necessário, tendo em conta a sua especial competência em determinado domínio, ser membro de júris de concursos abrangidos pelo Estatuto, pelo Estatuto de Ensino Superior Politécnico e pelo Estatuto da Carreira de Investigação Científica; e lecionar, em situações excecionais em instituições de ensino superior, não podendo, contudo, satisfazer necessidades permanentes de serviço docente.

3. Admitindo, porém, sem conceder que esta interpretação – assente num elementar princípio de razoabilidade – não seja aceite, acrescem outras considerações.

Naturalmente, os professores jubilados ao atingirem o limite de idade e os aposentados, ao cumprirem os requisitos legais, abrem vagas. E compreende-se que deixem de ministrar aulas na licenciatura (ou no 1.º ciclo, na terminologia de Bolonha), por um duplo imperativo: de estimulo à carreira de colegas mais jovens e de renovação dos conteúdos e dos métodos de ensino.

Já não quanto às demais atividades da vida académica, mormente a regência de cursos de mestrado e de doutoramento, a supervisão de pós-doutoramentos e a orientação de investigações.

Eles trazem a experiência que outros ainda não adquiriram e o prestígio nacional e internacional que pode atrair mais e mais alunos que, com as suas propinas, atenuam um pouco os cortes orçamentais que as Universidades vão sofrendo.

E, talvez mais que tudo, a presença de professores jubilados e aposentados nas Escolas convivendo com outros professores e alunos traduz o enlace da continuidade e mudança de que a instituição universitária sempre carece.

Pôr isto em causa é atentar contra o princípio da autonomia científica e pedagógica constitucionalmente consagrado (art. 76.º, n.º 2, da Lei Fundamental).

4. Nem o que se passa nas Universidades públicas será muito diferente do que se passa em quaisquer outros serviços e organismos da Administração direta, indireta e autónoma.

Não representa o impedimento de aposentados ou reformados de funções públicas de exercerem atividades não remuneradas, em entidades públicas, um atentado à liberdade de trabalho e de profissão (art. 47.º da Constituição)?

E, talvez mais que tudo, tendo até em conta a maior longevidade das pessoas, uma claríssima violação da norma que manda a política de terceira idade englobar medidas de caráter económico, social e cultural tendentes a propiciar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal através de uma participação ativa na vida da comunidade (art. 72.º, n.º 2)?

Pelo menos, para um universitário que se sinta a cem por cento, não se concebe vida ativa fora da Universidade.

Constitucionalista, Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

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