A grande fraude* quer refraudar

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O número 1 de Anais Jardinianos**, dedicado à extraordinária obra de Alberto João Jardim depois de largar a Madeira e pousar no continente, ilumina a segunda vida daquele que, durante 37 anos, foi Presidente Plenipotenciário e Quase Vitalício do Governo Regional e depois foi para Lisboa ser deputado da Nação mas com a ideia escanifobética de chegar a Presidente da República Portuguesa, ainda agora começou a biografia e já nos falta o ar.

Foi pouco depois das eleições regionais de Março de 2015: a austeridade mantinha-se por um ano adicional na Madeira, em troca de 320 milhões de euros negociados secretamente***, e de forma pelintra, por João Jardim, autor da falência da Madeira (mais de 6 mil milhões de euros de dívida). Satisfeito com o seu notável trabalho, que nas últimas semanas incluíra distribuir lugares na função pública aos amigos e injectar dinheiro em empresas já falidas, o colosso do Funchal desembarcou na Portela. Viera para ocupar o posto de deputado na AR mas, logo na primeira noite, lembrou-se de que a 3.ª República é corrupta e está morta. Por causa disso, deram-lhe as saudades das borgas de estudante (Lisboa e Coimbra) e foi matá-las à sua maneira.

Passou o resto da noite a conduzir, solitário, pelo túnel da Avenida João XXI e pelo túnel das Amoreiras, para cima para baixo, para baixo e para cima. A meio da madrugada, telefonou a um amigo do coração, Santana Lopes:

— Pedro, tive saudades dos túneis da Madeira e vim aqui ao teu tunelzinho.

— Espera aí, bebeste?

— Buraco ridículo. Os meus na Madeira têm quilómetros e quilómetros, escavados na rocha. Por causa de mim, as pessoas chegam mais depressa!

— É verdade. Mas aquilo é a ilha da Madeira. As pessoas chegam mais depressa... aonde?

— Pedro, meu comuna socialista da maçonaria e da CIA, eu quero ser Presidente da República, vais ter de levar comigo!

— Pois bebeste.... Onde estás que vou buscar-te, Alberto João?

— Oh, vou andar por aí, como diz o outro...

Mais tarde, o enérgico insular conduziu até ao viaduto Duarte Pacheco, obra minorca que, na Madeira, nem valeria a pena inaugurar duas vezes pelas eleições. E aí, molhando a ponta do charuto na poncha da garrafita desrolhada do bolso, trazida na bagagem, Alberto João recordou uma vida dedicada ao poder:

De quando chegou ao Governo, abriu a boca e os independentistas da Flama (Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira) deixaram de pôr bombas, decerto por lhes ter despertado bons sentimentos.

De quando mandava publicar “notas oficiosas” obrigatórias nos jornais, a chamar “traidores” e para responder aos “imbecis, relapsos e contumazes” que lhe faziam frente, ou para explicar que um artigo não elogioso se devia “à indisposição própria do período” da jornalista. De quando nomeava os directores e escolhia as notícias e ainda escrevia os comentários dos jornais pagos pelos contribuintes para dizerem só bem dele. De quando mandou cortar o cabo submarino da Marconi para ninguém relatar a maré negra do Porto Santo, em 1991. De quando fechava as portas na administração pública a quem não lhe fazia a vénia, de quando abria as portas da fortuna aos amigos do partido. De quando mandava “para a rua” quem dele discordava. De quando o braço-direito Jaime Ramos arrancou com um negócio de sifões de retrete para uma carreira na política regional. De quando defendeu a diocese do Funchal dos “ataques” e a “perseguição” ao padre Frederico e aos seus famosos vídeos domésticos com rapazinhos. De quando dizia “quero que a Assembleia da República se foda” e de quando chamou “bastardos, para não lhes chamar filhos da puta”, aos jornalistas que noticiaram que Jardim acumulava a reforma com a remuneração de presidente regional. De quando dizia o pior possível do “Senhor Silva” ou de José Sócrates, até conseguir mais dinheiro para estourar em túneis e clubes de futebol e passava a gostar deles.

Oh, belos tempos. Que ainda não acabaram, suspirou Jardim, quando a luz do sol já tocava no topo do, como é que se chama?, Aqueduto dos Gastos Livres. Quando for Presidente da República, em breve, Jardim fará do continente o que estes cubanos não souberam fazer. Uma grande Madeira com: uma praia em Belém com areia importada de Marrocos ou Canárias, uma marcha dos Santos Populares de Lisboa com toda a gente em cuecas. E por falar nisso, uma estátua de Alberto João Jardim no Terreiro do Paço (vais-te embora, D. José) na pensativa posição da estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal, pronto a rematar. E, lá como cá, ou cá como lá, uma indesmentível protuberância na frente: a majestosa e autónoma barriga.

* título da obra Jardim, A Grande Fraude, uma radiografia da “Madeira Nova”, de Ribeiro Cardoso (ed. Caminho, Leya, 2011)

** publicação em fase de estudo, a pagar totalmente pelos contribuintes (se o deixarmos, se o deixarmos…)

*** ver PÚBLICO de 22 de Janeiro de 2015, artigo de Tolentino de Nóbrega. Por quatro décadas a mostrar sem medo o escabroso jardinismo, eu digo: “Je Suis Tolentino”

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