A grande evasão

O futebol, a obsessão com a cozinha e os concertos de música popular são três maneiras de resistir à realidade doméstica e ao desespero a que ela nos reduziu

O treinador do Benfica mudou-se para o Sporting. Isto bastou para provocar uma polémica nacional. Parecia que o Presidente da República tinha morrido ou que o dr. Costa se tinha demitido do PS.

As televisões não pararam de falar do caso como se o resto do mundo não existisse e os jornais também não falaram de outra coisa, com a esperança absurda de que o “escândalo” lhes fizesse subir as vendas. Não houve injúria, acusação ou ignomínia que se poupasse de lado a lado. A fúria e até o ódio rebentavam por toda a parte. Alguns políticos, como sempre, manifestaram o seu espanto e a sua indignação. Outros não hesitaram em se meter na polémica. Mas nem um único verdadeiramente percebeu o que se passava: os portugueses transferiram as suas paixões gregárias do desesperado destino do país para o futebol.

E não só para o futebol. Quem for lendo com paciência a imprensa indígena acaba por verificar que a maior parte do espaço é reservado a hotéis, férias, restaurantes, chefs e receitas. São páginas atrás de páginas de cozinha regional e gourmet, de mesas postas com os requintes da arte, de fotografias de pratos artisticamente arranjados (com uma especial atenção à cor e ao volume), de menus descritos com minúcia numa prosa suculenta e rendida. Que será esta extravagância num país pobre e sem futuro? Anda por aí gente capaz de pagar aqueles preços, que vivem na clandestinidade e nós não conhecemos? E que gozo tira o leitor pelintra dessa exibição de riqueza e “gosto”, em que nunca tocará? Ou o espectáculo só por si o consola da comida “feita” e congelada, que a miséria lhe impõe?

O país deixou de acreditar no governo e na oposição. Mas claramente gosta de se sentir parte de um “grupo”. Um “grupo” pequeno como nas conferências, nos debates, nos simpósios, nas feiras, nos congressos, para que diariamente o levam os chamados “organizadores de eventos”; ou, pelo contrário, um grupo imenso congregado à volta de um cantor ou de uma “banda” de música popular (normalmente com um nome inglês), que permite ao público uma histeria branda, de acordo com a ordem pública e os nossos costumes. A desfilada destes génios, ou mais do que isso, é contínua e no Verão, que está a chegar, inunda Portugal inteiro. Por causa do turismo? Em parte. Mas desconfio que principalmente para se sentir “em comunidade”. O futebol, a obsessão com a cozinha e os concertos de música popular são três maneiras de resistir à realidade doméstica e ao desespero a que ela nos reduziu. É uma evasão, uma grande evasão.

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