A fragilidade do Estado a desfilar, dia após dia, perante os deputados

A comissão de inquérito aos programas de aquisições militares está agora numa pausa de 25 dias. O que se descobriu, até agora, deve deixar-nos preocupados.

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Foi a Rui Neves que o advogado Sérvulo Correia entregou arquivos com documentos Nuno Ferreira Santos

Consciente da “complexidade” que rodeava os contratos, o Estado criou uma comissão. Era a prática corrente nos países europeus para “defender o interesse público” nas tremendas negociações de contrapartidas com alguns dos mais importantes fornecedores mundiais de armamento.

Nos últimos anos, Portugal comprou helicópteros, blindados, torpedos, submarinos, aviões e modernizou, ainda, a sua frota de caças F-16. Gastou milhares de milhões de euros. Em troca, as empresas vendedoras (Lockheed Martin, General Dynamics, MAN/Ferrostaal, entre outras das maiores, a nível mundial), comprometeram-se a gastar somas igualmente importantes em projectos de “contrapartida”, na economia nacional.

A Comissão Permanente de Contrapartidas (CPC), criada em 1999, era essa estrutura do Estado. Mas o seu funcionamento tem demasiados hiatos, amadorismo, estranhos desaparecimentos de documentação. Ouçamos, por ordem cronológica, em discurso directo, o que os seus vários responsáveis confessaram, ao longo da última semana, no Parlamento.

Pedro Brandão Rodrigues tomou posse, como presidente da CPC em Janeiro de 2003. “Exerci esta função pro bono e à borla.” Seguiu-se, em Março de 2005, Rui Neves. “Não havia comissão.” Foi um advogado, Sérvulo Correia, que lhe telefonou, vários meses depois da posse, em Setembro, para lhe entregar “uma série de arquivos”, com documentos. Em Janeiro de 2007, foi a vez de Pedro Catarino chefiar a CPC. “A comissão funcionava na base da boa vontade.” A estrutura era “ad hoc”. “Os escritórios de advogados tinham os arquivos, escreviam as actas, passavam as cartas para inglês.” Entretanto… “O gabinete técnico nunca teve os 10 elementos previstos, tinha seis”, e só foi constituído no segundo semestre de 2008. O representante do ministério da Ciência só integrou a comissão em 2010.

Catarino saiu, em Abril de 2010, e ninguém o substituiu. As funções da CPC, extinta dois anos depois, transitaram para a Direcção-Geral das Actividades Económicas. Manuel Lami é o director-geral que, formalmente, responde pelas funções de Catarino, Neves e Brandão Rodrigues, desde Fevereiro de 2013. “A CPC foi extinta em Maio de 2012 e a documentação chega à DGAE em Outubro de 2012.” Essa documentação - “um monte enorme de documentos” aterra numa estrutura “com meios escassos”. “Nos primeiros seis meses após receber a documentação, a DGAE teve de preparar técnicos”, assume Lami.

Da antiga CPC, a DGAE recebeu, nas palavras de Lami, “dois ou três computadores”, “centenas de dossiês” e “três funcionários administrativos”. Os documentos, sendo muitos, podem não ser os necessários… “Não posso dizer que os documentos estejam todos. Não há inventário”, assumiu Lami. As referências a “documentação extraviada” desta comissão remontam a 2008.

O deputado João Semedo, BE, leu na comissão de inquérito, na terça-feira passada, uma carta, de Maio de 2008, enviada por Pedro Catarino ao secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros, José Sousa Rego, na qual o presidente da CPC procurava “documentação extraviada” da comissão. Nomeadamente, todas as “actas das reuniões” anteriores a 2003. Na altura, “após pesquisa”, nada foi encontrado. Hoje, Pedro Catarino repete a resposta que recebeu: “Julgo que nunca foram encontradas.”

Os partidos da oposição (PS, PCP e BE) têm tentado explorar este estranho “extravio” de contratos e actas, e procuram encontrar incoerências na actuação do actual Governo, que denunciou um contrato (torpedos) enquanto prorrogou outro (submarinos). Do lado dos representantes dos partidos que suportam o Governo (PSD e CDS), a linha de interrogações segue outro caminho. Todas estas provas de “falta de meios” e deficiências de funcionamento da CPC decorrem de decisões tomadas em Governos do PS. O deputado do CDS Filipe Lobo d’Ávila recordou que, desde a sua criação, às várias alterações a que foi sujeita, a CPC é uma criação de ministros do PS. Cecília Meireles, sua colega de bancada, resumiu: “Todos os caminhos desta comissão vão dar ao PS.”

Tentando ultrapassar esta crónica divisão em linhas partidárias, o ex-deputado do PS, Ventura Leite, que é muito crítico do seu partido, disse na comissão (a pedido do PCP), que a única forma de resultar deste inquérito um “resultado histórico” é pensar de outra forma: “Aceitar que há algo transversal a todos os actores políticos: a incapacidade de gerir este processo.”

Ventura Leite viu a sua proposta de um inquérito parlamentar, semelhante a este, ser chumbada pela sua própria bancada, em meados da década passada. Mais tarde, em 2010, o PS e o CDS opuseram-se, também, a uma proposta semelhante do BE.

A matéria já criou muito “ruído” - expressão do ex-ministro Luís Amado. De investigações judiciais em Portugal a condenações por corrupção na Alemanha, relacionadas com o pagamento de “luvas” em Lisboa e Atenas. Há misteriosas somas de dezenas de milhões “desaparecidas” em off-shores. Um Cônsul honorário de Portugal em Munique condenado, ao lado de dois administradores alemães. Pagamentos da Ferrostaal à Escom (do Grupo Espírito Santo), que aparece como “intermediário” neste processo. E uma sombra que permanece.

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