25 de Abril, do Yom Kippur às reticências de Kissinger

Kenneth Maxwell, historiador britânico especialista em História da Península Ibérica, durante anos professor de História em Harvard e director fundador do Programa de Estudos Brasileiros do Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos da mesma universidade, escreve sobre o momento internacional em que o 25 de Abril acontece e o seu impacto no mundo.

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Spínola na tomada de posse do 1.º Governo provisório Alberto Gouveia/Fototeca
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Salazar nos anos 1960 com Marcello Caetano DR
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Henry Kissinger com Pinochet Reuters
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Henry Kissinger com Gerald Ford AFP
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Frank Carlucci com Mário Soares num reencontro em Portugal em 2006 Enric Vives-Rubio

É importante lembrar que o 25 de Abril de 1974 foi um golpe militar. Foi totalmente inesperado e teve um sucesso imediato. O golpe, no entanto, aconteceu num momento internacional decisivo. Uma série de circunstâncias deram a Portugal um papel central nas muitas e interligadas crises dos anos 1970. A primeira das quais foi o impacto da Guerra Fria.

No período imediatamente a seguir ao golpe, muito poucos observadores internacionais compreenderam o que estava em causa em Portugal. Mais importante, poucos conheciam os actores, especialmente dentro do Movimento das Forças Armadas (MFA). Os observadores internacionais sabiam no entanto uma coisa: que o Partido Comunista Português estava a ter um papel central. O PCP não esteve envolvido no golpe mas, tendo sido fundado em 1921, era mais antigo do que o regime de Salazar. Era leal a Moscovo. Era liderado por Álvaro Cunhal desde 1943. Tinha bases sólidas no país. E tinha conquistado grande credibilidade por causa da sua longa oposição ao regime de Salazar e por ter sido consistentemente perseguido pelo regime.

O segundo elemento que tornou Portugal importante foi a situação no Sul de África. Depois do 25 de Abril, o MFA queria acabar com as guerras coloniais sem demora. Esta tinha sido a grande razão, afinal, pela qual o MFA tinha feito o golpe. O general Spínola, o primeiro presidente provisório a seguir ao 25 de Abril, não antecipou uma descolonização imediata. Spínola queria um acordo negociado.

Mas as peças decisivas estavam mais a sul, em Moçambique e Angola, onde todos os movimentos de libertação nacionais tinham os seus próprios objectivos e calendários. As suas ligações internacionais eram também muito mais sólidas do que as dos novos governantes em Portugal. E não apenas com a esquerda internacional. Também com os Estados Unidos, que na altura boicotavam Portugal por causa da oposição internacional em relação à política colonial portuguesa em África.

O golpe de Lisboa teve o efeito de transformar o equilíbrio de forças no Sul de África. Este fim abrupto do compromisso de Portugal em continuar as guerras em Moçambique e Angola fragilizou rapidamente o regime branco minoritário no Sul da Rodésia. E no início de Novembro de 1975 a intervenção das forças militares cubanas em Angola acabou por ser decisiva na derrota de uma força expedicionária africana e em defender o MPLA em Luanda. No fim de Novembro de 1975, Portugal já deixara de ter um papel na crise angolana. A seu tempo, esta nova situação no Sul de África também marcaria o princípio do fim do regime da minoria branca na própria África do Sul.

A crise portuguesa também se cruza com a do Médio Oriente. Durante a guerra do Yom Kippur, Marcelo Caetano tinha sido obrigado, em 1973, por Henry Kissinger, então o conselheiro para a Segurança Nacional do Presidente Richard Nixon, a autorizar o uso da base americana nos Açores para os voos de reabastecimento para Israel. Como resultado, Portugal – que já estava isolado e era um pária internacional –, foi sujeito a novas sanções, desta vez por parte dos Estados árabes exportadores de petróleo. O canal do Suez já estava fechado. No mundo pós-Yom Kippur isso aumentou a pressão política e económica sobre Portugal num momento crítico.

O período a seguir ao golpe de 25 de Abril de 1974 incluiu também o escândalo do Watergate nos Estados Unidos e a demissão de Richard Nixon. O seu vice-presidente Gerald Ford tornou-se Presidente. Mas Henry Kissinger manteve-se como implementador-chave da política externa norte-americana. De forma imprevisível, o golpe de Lisboa baralhou o equilíbrio de forças da forma mais inesperada. Como resultado, os acontecimentos de Lisboa tornaram-se uma preocupação central nas relações Oriente-Ocidente.

Os soviéticos viram uma oportunidade em Portugal e em África, assim como os cubanos. E, inicialmente, tanto Moscovo como Havana estavam mais bem informados do que os seus rivais geopolíticos em Washington, Londres e Bona. De início, o envolvimento das potências ocidentais em Portugal foi lento, e assim se manteve durante os meses a seguir ao golpe de Abril, por causa da incerteza dos seus objectivos.

A 18 de Outubro de 1974, durante um almoço no Departamento de Estado em Washington, Henry Kissinger, nesta altura já secretário de Estado (e ao mesmo tempo conselheiro para a segurança do Presidente Ford), deixou bem claras as suas reservas sobre Portugal ao general Costa Gomes, que tinha sucedido a Spínola como Presidente provisório, e ao líder socialista Mário Soares, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros. Kissinger disse-lhes que a penetração comunista nas instituições do Estado, nos media e nos sindicatos era tão generalizada que Portugal estava provavelmente perdido na perspectiva do Ocidente. Kissinger acusou Mário Soares de se tornar “um Kerensky português”. Quando Soares protestou e disse que não queria tornar-se “um Kerensky”, Kissinger respondeu-lhe: “Kerensky também não queria.”

Para reforçar a sua posição, Kissinger enviou um novo embaixador para Lisboa, Frank Carlucci, fluente em português, com bons conhecimentos em Washington e que lhe fora recomendado por outro homem igualmente fluente em português, um velho conhecido do Brasil, o director da CIA, Vernon Walters, que visitara Portugal secretamente em Agosto de 1974 e reportara para Washington que “Portugal estava completamente perdido para os comunistas”.

Mas dois elementos entraram em cena em Março e Abril, gerando um conflito intenso em Portugal durante o “Verão quente” de 1975. No início de Março de 1975, o general Spínola foi levado a acreditar que um golpe anticomunista teria bons resultados. Mas ao chegar à base aérea de Tancos para comandar a operação da revolta, ele encontrou uma enorme confusão e, por pouco, conseguiu fugir de helicóptero para Espanha. O MFA criou então o Conselho da Revolução, afastou os elementos mais moderados do MFA e prendeu membros da elite financeira. A seguir, a assembleia do MFA decretou a nacionalização dos bancos e das seguradoras e anunciou que em breve promulgaria a expropriação de terras dos grandes latifundiários, um velho objectivo do partido comunista, cujos trabalhadores rurais eram o principal apoio popular no Sul rural do país.

No momento do golpe, no entanto, o MFA tinha-se comprometido em relação a um calendário para as eleições. Um ano a seguir ao golpe, a 25 de Abril de 1975, seria eleita uma Assembleia Constituinte. E um ano a seguir a isso, a 25 de Abril de 1976, houve eleições nacionais já com a nova Constituição. No clima de intensa mobilização popular nas ruas e nas zonas rurais, os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975 foram decisivos. Pela primeira vez, emergiu um retrato real da opinião popular. 91,7% dos portugueses votaram. Os socialistas tiveram 37,9% dos votos, os populares-democratas (PPD, hoje PSD) 26,4%. E os comunistas apenas 12,5%. As eleições mostraram que os portugueses queriam uma mudança, mas também queriam de forma clara que essa mudança fosse feita ao estilo democrático da Europa ocidental. As eleições mostraram também uma divisão regional. E que o apoio do PCP estava concentrado em Lisboa e no Alentejo e que os democratas populares eram fortes no Norte. E, finalmente, que os socialistas tinham uma ampla abrangência nacional.

A seguir às eleições, Álvaro Cunhal disse que a “eleição não tem nada a ver com a dinâmica de uma revolução”. Mas o embaixador Frank Carlucci disse mais tarde que foram “as eleições que viraram a situação”. Kissinger não estava convencido. Quando Carlucci lhe disse que Mário Soares era “the only game in town”, Kissinger gritou para o seu staff: “Quem é que me vendeu o Carlucci como um tipo duro?”

A situação na América Latina também foi decisiva para a reacção que Kissinger teve em relação aos acontecimentos em Portugal e na África portuguesa em 1975. O Brasil fora desde sempre um parceiro passivo na política externa portuguesa, mas em 1974 e 1975 isso mudou radicalmente. O Brasil estava a fazer as suas próprias aproximações aos movimentos de libertação. O Brasil reconheceu a Guiné-Bissau a 18 de Julho de 1974, uma semana antes de Spínola ter declarado que Portugal iria começar a transferir o poder. A política externa “independente” do Brasil era articulada no Ministério dos Negócios Estrangeiros por Italo Zappa, que mais tarde se tornou embaixador em Moçambique, China, Cuba e Vietname. Durante a crise de Novembro de 1975, o Brasil manteve sempre um cônsul em Luanda.

Havia um paradoxo na posição brasileira. O general Ernesto Geisel iniciara uma política interna de “distensão”. Mas desde o golpe militar de 1964 que o Brasil era um bastião de influência anticomunista na América Latina, e recebera um forte apoio dos EUA, que receava o aparecimento de “outra Cuba” na América Latina. Em Setembro de 1973, um sangrento golpe ocorreu no Chile e derrubou Salvador Allende. A 24 de Março de 1976, houve um golpe militar na Argentina, dando início à Guerra Suja, que resultou em milhares de mortos e “desaparecidos”. A 10 de Junho de 1976, Kissinger disse ao ministro dos Negócios Estrangeiros argentino: “Vamos fazer o que for possível para vos ajudar a ganhar.”

Na Europa, no entanto, a experiência da revolução portuguesa foi mais positiva, especialmente para Espanha. A 27 de Setembro de 1975, em resposta à execução de cinco militantes anti-Franco pelas autoridades espanholas, multidões atacaram e incendiaram a embaixada e o consulado espanhóis em Lisboa. A polícia portuguesa e as Forças Armadas nada fizeram para proteger as instalações. Mas a Espanha não reagiu. Franco morreu a 20 de Novembro de 1975.

Neste momento, as potências ocidentais começaram a fazer tudo o que podiam para reforçar a situação portuguesa e mantiveram-se distantes em relação às forças que em Espanha apoiavam o general Spínola, que queria uma intervenção clandestina mais activa e violenta. O momento mais perigoso ocorreu a 13 de Novembro de 1975, quando um grande grupo de homens da construção civil cercou a Assembleia Constituinte e o Governo em Lisboa. A 25 de Novembro, o coronel Ramalho Eanes esmagou de forma decisiva a rebelião esquerdista dos pára-quedistas radicais.

E contingência é um elemento nesta história.

Talvez o mais surpreendente tenha sido a acção dos Estados Unidos em Portugal em Novembro de 1975. Aqui, o papel do embaixador Frank Carlucci foi decisivo. Carlucci manteve-se afastado da extrema-direita e foi capaz de combater a reacção do todo-poderoso secretário de Estado Henry Kissinger, nessa altura no auge do seu poder. Contra a tradição dos embaixadores americanos, Carlucci conseguia transmitir os seus pontos de vista directamente ao Presidente Ford através do seu velho amigo da Universidade de Princeton e colega de wresting, Donald Rumsfeld, então chefe de gabinete da Casa Branca. Esta é, claro, uma ironia desta história. O apoio de Rumsfeld não tinha absolutamente nada a ver com Portugal, mas sim tudo a ver com política interna de Washington. Ele não era amigo de Kissinger. Carlucci, através de Rumsfeld, pediu ao Presidente Ford que apoiasse um caminho intermédio, e argumentou que as eleições para a Assembleia Constituinte tinham demonstrado o efeito que essa abordagem tivera na população portuguesa.

Os comunistas e Moscovo bem podem ter antecipado que os EUA iriam apoiar uma violenta acção armada clandestina. Afinal, era isso que Kissinger estava a fazer na América Latina e em África, e em inúmeras ocasiões ele tornara claro que era isso que queria fazer em Portugal. Mas quando chegou o momento, nem os EUA, nem o Brasil nem a Europa ocidental apoiaram Spínola no exílio. Nenhum deles queria um novo Pinochet em Portugal. Felizmente. O que foi bom para a democracia em Portugal e para a democracia em Espanha.

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