25 de Abril, de casa em casa

A sombra da maçonaria, o lançamento do livro de Spínola, a demissão de Natália Correia, a gráfica e o Partido Comunista, Palma Carlos primeiro-ministro e a direcção do Diário de Noticias

As horas de ansiedade e expectativa que envolveram o remate do 25 de Abril podem ver-se e sentir-se no Núcleo Museológico do Posto de Comando do Quartel da Pontinha, no Regimento de Engenharia 1, referência obrigatória de uma etapa do processo que mudou Portugal em 1974. Não é sem emoção que, de vez em quando, ali me desloco para recapitular imagens e palavras dos dias 24, 25 e 26 de Abril e a entrevista que fiz a Spínola para O Primeiro de Janeiro, as primeiras declarações proferidas em público, ao ser divulgado o Programa do MFA.

Em plena turbulência militar e politica, tive, há 40 anos, acesso ao Quartel da Pontinha devido às relações pessoais com militares como, por exemplo, António Ramos e Manuel Monge. Participara na conclusão e lançamento do Portugal e o Futuro. Exercia as funções de chefe de redação, em Lisboa, d’O Primeiro de Janeiro e colaborava na editorial Arcádia. Natália Correia fora, sumariamente, despedida da Arcádia, pela denúncia de (alegado) assédio a uma secretária da editora, durante a Feira de Frankfurt.

Em casa de Spínola, tive, a partir de Novembro de 1973, uma série de reuniões quando fazia a revisão das provas tipográficas de Portugal e o Futuro. O general, a certa altura, passou a manifestar desconfiança às observações e retificações que ia formulando em face de incoerências que se deparavam no texto. Antonio Ramos confidenciou-me que uma pessoa muito próxima do general lhe dissera que eu “não era só da oposição, mas também da maçonaria”. Foi difícil transpor os efeitos desta referência.

Mas houve mais duas outras situações insólitas: a ameaça do livro ser apreendido pela PIDE, na tipografia. No escritório de Ribeiro da Silva, comerciante do Chiado, maçon ativo e oposicionista histórico (que cedeu a casa de Verão na Caparica para uma reunião do MFA), Vitor Alves revelou que uma das cópias do livro seguira para Paris, a fim de ser editado e traduzido, no caso de interdição em Portugal. Bastante alarmado, António Ramos procurou-me, noutra ocasião, em minha casa, na Rua Barata Salgueiro, às 3h da madrugada, para apurar se Rogério Moura, gerente da Gráfica Safiel, onde ia ser composto e impresso o Portugal e o Futuro “era comunista, ou tinha ligações diretas ao partido”. Já não havia nada a fazer. Na véspera, fora entregue a fotocópia integral do livro.

Decorreu, no início de Fevereiro, um encontro secreto, que viria a ser primordial. Todavia, nem Spínola, nem ninguém do seu grupo ou da editora poderiam suspeitar do plano a cumprir. Tomei parte nesse encontro organizado por Paradela de Abreu e, apenas, com Carlos Eurico da Costa, ex-jornalista, diretor da agência de publicidade CIESA. O aparecimento do livro teria de coincidir com notícias a publicar, sobretudo, no República e no Expresso. O comandante Ferreira, da TAP, lançava a ponte para jornais e livrarias de Angola e Moçambique. Num apartamento alugado na Rua António Serpa instalou-se um gabinete de trabalho, onde redigi textos para acompanhar a entrega do livro a jornalistas portugueses e estrangeiros.

Entretanto, Carlos Eurico da Costa, logo que o livro foi autorizado, pela hierarquia militar e política, dirigiu-se a casa de José Ribeiro dos Santos, que já lera provas emendadas, que lhe despertaram indomável curiosidade. Ofereceu-lhe um dos primeiros exemplares de Portugal e o Futuro”com um dos meus resumos do livro. Ficou, porém, estabelecida a seguinte estratégia: Spínola ia à redação do República oferecer, em mão, a Raul Rego um livro autografado. Teria de ser às 9h, antes da balbúrdia provocada pela Censura. Entre as 10h e as 10h30, Ribeiro dos Santos aparecia e entregava a Raul Rego a notícia do livro devidamente redigida. Tal como prevíamos, Raul Rego aceitou, agradeceu e passou o texto ao diretor adjunto Vitor Direito para mandar para a tipografia.

Depois de conhecer as resoluções da Censura, Raul Rego e Vitor Direito foram, tranquilamente, almoçar no restaurante Casa da Índia, na Rua do Loreto. Álvaro Guerra, encarregado do fecho do jornal, ao ler a notícia, apercebeu-se da importância de Portugal e o Futuro; alterou o título e a paginação. Ficou a abrir o jornal, de forma explícita, que o fim da guerra colonial exigia, apenas, solução política.

Ao regressarem do almoço, Raul Rego e Vítor Direito – e com o jornal na rua – olharam, estupefactos, para a primeira página. Ralharam com Álvaro Guerra. Admitiram todas as retaliações possíveis. O regime caía aos bocados, o medo ainda perdurava, mas a Censura fora ultrapassada. A data da revolução ainda não se sabia, mas aproximava-se todos os dias. Viria a ser em 25 de Abril.

A gráfica, no Alto do Carvalhão, gerida por Rogério de Moura, funcionava de dia e de noite para satisfazer pedidos das livrarias. Em menos de um mês estavam esgotados 100 mil exemplares do Portugal e o Futuro, tantos quantos, ao fim de 50 anos, vendera A Selva de Ferreira de Castro, o livro que – depois de Os Lusíadas e do Pantagruel, de Berta Rosa Limpo – maior tiragem, até então, atingira em Portugal.

Spínola voltou à redação do República, na segunda ou terça-feira, para agradecer a Raul Rego a notícia e o destaque na primeira página. Raul Rego respondeu que continuava ao dispor do general. A Comissão Coordenadora do MFA também ficou muito sensibilizada e, para hipótese de primeiro-ministro, depois da revolução, acrescentou o nome de Raul Rego à lista que já incluía Pereira de Moura e Miller Guerra. Em audiências separadas, já depois do 25 de Abril (e sem combinarem um com o outro), Pereira de Moura e Miller Guerra puseram, como questão prioritária, acabar a guerra e promover a independência das colónias. Spínola entrou em pânico. Raul Rego não chegou a ser abordado.

Já com nomes para o Governo, mas sem estar definido, faltava a Spínola o primeiro-ministro. Foi a casa do seu amigo Fernando Olavo pedir-lhe uma solução. Sugeriu-lhe Adelino da Palma Carlos. E justificou: é “republicano e antifascista”, “um catedrático de Direito” e “um gajo com muita prática de assembleias gerais”. Palma Carlos deu conhecimento à família e alguns amigos e aceitou ser primeiro-ministro.

Em casa de Alfredo Guisado, antigo diretor do República e um dos poetas do Orpheu, noutra reunião, na qual participei, com a presença de Palma Carlos, falou-se dos meandros do lançamento do Portugal e o Futuro, das vulnerabilidades de Spínola e da recusa de Álvaro Salema em ser diretor do Diário de Notícias. Palma Carlos, já primeiro-ministro (estou a ouvi-lo) exclamou, de imediato: “Amanhã vou telefonar ao Rego, que é ministro da Comunicação, para nomear o Ribeiro dos Santos”. Palma Carlos e Raul Rego nomearam Ribeiro dos Santos – que nunca pertenceu à maçonaria, posso afirmar – diretor do Diário de Notícias. Até ao 11 de Março. O que sucedeu depois já é conhecido e estudado em várias universidades.

Jornalista, da classe de Letras da Academia das Ciências

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