"Têm que ser eles a decidir. É preciso saber esperar..."

Tendência é misturar várias substâncias

O estudo de caracterização promovido pelo Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) vem confirmar um dado já atestado noutros estudos europeus do mesmo género: que a heroína está a perder terreno (embora 93 por cento dos consumidores inquiridos pelo IDT digam que a consumiram) face à cocaína, já consumida por 79,2 por cento dos inquiridos. Mas a tendência é mesmo misturar várias substâncias que juntam aquelas duas mas também o álcool, as anfetaminas, os tranquilizantes e a metadona, prescrita ou obtida ilegalmente. São 83 por cento os que fazem policonsumo e a combinação mais escolhida é a heroína e cocaína, ambas de consumo diário para a maior parte dos consumidores. A caracterização de utentes permitiu ainda constatar que 40 por cento têm familiares que também consomem ou já consumiram drogas. A vida de consumo de droga já levou cerca de 39 por cento a serem detidos pelas autoridades e 28,2 por cento acabaram mesmo na cadeia, a maioria entre uma a três vezes na vida. A esmagadora maioria são portugueses (92,8 por cento), solteiros, desempregados e têm como grau de escolaridade apenas o ensino básico. a Empoleirado num dos muros de tijolo por rebocar desta vivenda em Benfica, Lisboa, Jorge informa: "Derivado da agenda dele estar superlotada, não consegue arranjar hoje um tempinho para estar com as senhoras. Ele não vai", informa, como quem imita um assistente sentado à secretária a dizer que o patrão, neste caso o amigo, não as pode receber.
A psicóloga Bárbara Ramos Dias e a enfermeira Isabel Santos perguntam, irónicas, se amanhã será melhor dia para Noel. Jorge responde que é capaz de ser e diz que "ele está neste momento a escrever tudo na agenda, está a escrever que é urgente e tudo".
"Escreve aí que [o Noel] estava de ressaca e não quis ir ao médico", diz Bárbara para Isabel, sorrindo. As técnicas fazem parte de uma das 25 equipas de rua subsidiadas pelo Instituto da Droga e da Toxicodependência para dar apoio a toxicodependentes marginalizados. Esta casa abandonada que abriga cinco hóspedes é um dos locais de visita costumeira.
Já se foram habituando a frustrações como esta. Desviaram-se quilómetros da rota habitual da carrinha por Lisboa para levar Noel - um toxicodependente com um hematoma na perna que pode estar a infectar - ao médico. Encontraram-no a ressacar depois de consumir droga e com pouca vontade de ir tratar da perna.
O russo Igor, o único hóspede da casa inacabada que desce até à carrinha, dá pouca conversa às duas técnicas da associação Novos Rostos... Novos Desafios - apenas vem para trocar seringas usadas por novas. Para Igor, ainda é muito cedo para sequer começar a pensar em sugerir uma possível ida para tratamento.
Isabel faz parte da equipa há um ano e diz que a "tentação mais primária" é tentar convencer aqueles com quem se cruzam a seguirem para terapia. Se lhes fizessem a cabeça, alguns até aceitariam ir, mas depois ficariam na comunidade terapêutica um dia e vinham-se embora no outro. "Têm que ser eles a decidir. É preciso saber esperar..."
Há utentes que se limitam a ir à carrinha trocar seringas e "não abrem a boca", noutro dia já dizem "boa noite", "ao terceiro dia já são capazes de falar de filhos", "depois do primeiro casamento", enumera Bárbara, que coordena a equipa. Depois de meses a coleccionar bocados de vida, pode até ser que uma das técnicas agarre na história de uma filha e a use "para motivação para tratamento", nota Isabel Santos. Algo que poderá vir a acontecer com Luís, que hoje encontram num beco perto do Largo do Intendente.
Luís hoje está conversador. Conta que a mulher está a morrer com sida, têm quatro filhos, três deles foram para a Casa Pia. Intercala retratos de desgraça familiar com apreciações sobre a qualidade da droga que hoje se vende. Fala dos tempos áureos da cocaína de qualidade, da "que dava flashes".
Não será hoje que Bárbara ou Isabel vão tentar falar-lhe das hipóteses de tratamento, talvez lembrando-o da sua filha mais pequena. "Ainda não está no ponto. Hoje estava a queixar-se", comenta Isabel. Falaram-lhe da metadona, amanhã voltam à carga e há um dia em que ele vai concordar em ir para tratamento, depois combinam um dia e ele não aparece e outro em que acaba por aparecer. Têm várias destas histórias. A maior parte dos tratamentos dão em recaída e os consumidores que convenceram a tentar afastam-se delas quase com vergonha de as terem desiludido. Como Manuel, que agora "foge da equipa", mas chegou a vir ter com elas todo aprumado a apresentar a namorada e a falar do emprego, "como se nós fôssemos paizinhos", lembra Isabel. Manuel acabou por recair.
Jonas não. Esteve dois anos numa comunidade terapêutica, há três anos que não consome. Mas no meio daquilo que se chama "estratégia de redução de danos" o sucesso não se mede pela abstinência - há uma outra escala de sucessos. Um é dar seringas e evitar transmissões de HIV/sida, levar toxicodependentes a fazer rastreios à tuberculose ou à hepatite, tentar que se convençam de que fumar é menos arriscado do que injectar, explica Bárbara.
A acompanhar os sucessos há insucessos. Bárbara tem 32 anos, tal como Jorge. Há cinco anos que se cruzam semanalmente mais ou menos nos mesmos locais. Hoje é num beco ao pé do Largo do Intendente a tresandar a urina, onde Jorge está semideitado num colchão encardido. Bárbara lembra-se dele quando o conheceu, "mais gordinho, ainda de cabelo cortado, barba feita, roupa limpa". Agora tem o cabelo preto longo, a barba farfalhuda de não ser aparada, a roupa imunda, e está a injectar-se na perna direita com a ajuda de alguém.
"O Jorge não se vai aguentar muito tempo, vai pelo mesmo caminho" do Hélder, comentam uma com a outra já ao volante da carrinha a caminho de outro local, numa rota que começa às 18h e acaba à uma da manhã. "O Hélder morreu. Fiquei KO!", diz Bárbara. Não é todos os meses que sabem da morte de um utente, mas pelo de três em três meses, às vezes são vários de seguida. "Hoje não vimos o Nuno." O que será feito dele é a pergunta que fica por fazer. (Os nomes usados nesta reportagem são fictícios)

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