São as mães que mais castigam as crianças da Geração 21

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Alexandra, uma das crianças do projecto Geração 21, avaliou ontem a sua capacidade respiratória fotos: Ricardo Castelo\NFACTOS

Projecto pioneiro avalia o crescimento e desenvolvimento de mais de oito mil crianças desde o nascimento. Hoje, no Porto, são apresentados resultados sobre os seus primeiros sete anos de vida

A Joana come a sopa, uma colher de cada vez e sem precisar de cantigas. Quando perguntamos ao João se tem boas notas na escola responde-nos que "quase sempre não". A Ana Sofia abre guerra com a mãe para comer alface e cenouras e gosta mesmo é de chocolate. A Alexandra já teve de fazer dieta quando era mais pequena mas agora tem o peso certo. Têm todos sete anos e são uma minúscula amostra do ambicioso projecto Geração 21, da responsabilidade da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que quer acompanhar o crescimento e desenvolvimento de mais de oito mil crianças até à idade adulta. Hoje são apresentados alguns dos resultados.

Sete anos depois do início do projecto e do início das vidas destas crianças, já há alguns dados sobre o desenvolvimento ósseo, a obesidade, a asma e até mesmo sobre a dor e os conflitos entre pais e filhos, entre muitos outros campos que são explorados neste trabalho. A primeira avaliação foi no berço, nos primeiros dias de vida, depois (quase 90%) regressaram aos 4 anos e agora é a altura do "exame" dos sete anos que está ainda em curso. Há conversas com os pais e com as crianças, que são também pesadas, medidas e submetidas a uma série de testes (desde análises ao sangue até avaliações da sua capacidade respiratória). O objectivo é encontrar nesta "coorte" (grupo de pessoas que nasceram na mesma altura) dados relacionados com o desenvolvimento e estado de saúde da geração nascida no início deste milénio, bem como explorar as questões científicas e reflectir sobre as preocupações em políticas de saúde que irão influenciar a sua saúde. Ou, como resume Henrique Barros, coordenador do projecto, "ter aqui um preciosa fonte de informação para planear a saúde em Portugal". Estamos perante uma das maiores "coortes" europeias.

Em traços muito gerais, é possível perceber que as crianças da Geração 21 comem muitos doces, mas também comem muita sopa, vegetais e fruta. Aliás, o consumo de vegetais das crianças portuguesas corresponde praticamente ao dobro dos valores encontrados noutros estudos do mesmo género realizados noutros países. Assim, cerca de 90% das crianças afirmam comer sopa de legumes (91,9% aos 4 anos e 87,2% aos 7 anos) e 86% dizem que comem fruta (86,3% aos 4 anos e 85,9% aos 7 anos).

Porém, nem tudo são boas notícias à mesa. Quando se trata de doces, refrigerantes, bolos e snacks (classificados como "alimentos de elevada densidade energética"), os consumos são preocupantes e o período mais crítico regista-se aos 4 anos, quando 71% das crianças admitem comer este tipo de alimentos diariamente (aos 7 anos a percentagem baixa para os 61%). Neste tipo de alimentos, os doces são os preferidos.

Talvez também por causa do açúcar mas não só, o projecto Geração 21 encontrou uma prevalência de excesso de peso de 19,9% e de 10,5% de obesidade aos sete anos. "Valores preocupantes", constata Henrique Barros, que sublinha o facto deste problema ter aumentado consideravelmente dos 4 para os 7 anos. No caso do concelho de Vila Nova de Gaia (um dos seis concelhos do distrito do Porto abrangidos por este estudo) a prevalência da obesidade passou dos 8,7% (aos quatro anos) para os 16,9% (aos sete anos).

Mas uma das maiores surpresas deste trabalho surge no capítulo dedicado aos conflitos entre pais e filhos, onde a mãe parece estar a substituir o pai na área da disciplina. O estudo do "estilos parentais de disciplina" é considerado como de extrema importância para a compreensão do desenvolvimento físico e psíquico das crianças. Os resultados das conversas que a equipa do projecto teve com os pais e com as crianças mostram, por exemplo, que a disciplina não violenta, que engloba sobretudo comportamentos de explicação ou o "colocar de castigo", foi declarada por quase todos os pais e mães. Também os actos de "agressão" ou "advertimento" psicológico foi declarada por mais de 90% dos pais. Por outro lado, 80% dos pais e 90% das mães admitiram ter recorrido a uma "punição corporal" (neste caso, especificamente, a palmada no rabo) pelo menos uma vez no último ano.

O quadro que mostra o que reportam os pais e os filhos sobre as diferentes formas de disciplina no ano anterior também permite concluir que em todos os casos (agressão psicológica, punição corporal, agressão grave e muito grave) são as mães que mais castigam os filhos (meninos ou meninas). Porém, nota-se que as crianças reportam mais casos de agressões graves e muito graves do que as declaradas pelos pais. O inverso acontece nos castigos mais leves (agressão psicológica), onde os pais surgem a declarar mais casos do que as queixas dos filhos. "Julgo que esses resultados mostram que as crianças hipervalorizam os castigos mais duros e raros e desvalorizam os mais leves e mais frequentes", arrisca explicar Henrique Barros. Sobre o papel disciplinador das mães, o epidemiologista defende que esta realidade não só será um reflexo do facto de elas serem as principais cuidadoras, mas também pode significar que estamos perante uma inversão dos papéis tradicionais, em que o pai era o principal actor nas punições.

Ontem, no serviço de Epidemiologia da Faculdade de Medicina estavam algumas crianças da Geração 21. Joana Alves, acompanhada da sua mãe e avó, apenas nos cedeu uns silenciosos acenos de "sim" e "não" num rosto assustado e corado de vergonha. Ana Sofia Passos, acompanhada da mãe e do irmão Bruno, confessou algum "medo da pica" que se anunciava enquanto coloria um pai natal. João Carlos Magalhães abusou do "às vezes" que surgiu nos temas da sopa, fruta e bom comportamento. Já Alexandra Filipa Moreira foi dizendo que a fruta não é o seu forte e sobre os meninos da idade dela adiantou que "uns portam-se bem e outros não, mas todos gostam de brincar". Joana, Ana Sofia, João Carlos e Alexandra Filipa também gostam de brincar, mas há (pelo menos) mais um ponto comum. Quem ralha mais lá em casa é a mãe, mas também é a mãe quem dá mais mimos e quem lê as histórias para eles. São apenas quatro meninos entre oito mil que Henrique Barros espera rever daqui a dois anos. "O objectivo é acompanhá-los, pelo menos, até aos 20 anos. Queríamos que fosse até eles terem filhos". Haja financiamento.

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