EDP quer a arquitectura e a arte a tornar as barragens património

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Em Bemposta Cabrita Reis quis unificar a paisagemEm Picote a obra de Calapez está a 160 metros de profundidadeO projecto de Souto de Moura fica à cota da ponte, enterrado na montanha Paulo Ricca

Souto de Moura vai fazer nascer um edifício de comando no coração da montanha. Cabrita Reis quis unificar um território a amarelo. Calapez fez de uma caverna uma "janela colorida"

Uma barragem causa sempre um impacto enorme na paisagem. Quando o território em que é construída é único, com um vale talhado pelo Douro, esse impacto pode tornar-se brutal. É assim nas hídricas de Bemposta e Picote, inauguradas nas décadas de 50 e 60 e que aumentaram agora a sua capacidade de gerar energia. Será assim na de Foz Tua, ainda em construção e cujo projecto do edifício de comando, de Eduardo Souto de Moura, é hoje apresentado na sede da EDP, no Porto. Um edifício que o arquitecto português, Pritzker 2011 (o prémio mais prestigiado da área), enterrou na montanha, virado para o rio.

Para valorizar esse património construído, criando um roteiro turístico que associa o turismo da cultura e da natureza à curiosidade que pode levar alguém a visitar uma barragem, a eléctrica criou um programa com vários artistas plásticos portugueses e arquitectos, com comissariado do crítico João Pinharanda. A ideia, explica ao PÚBLICO Sérgio Figueiredo, administrador da Fundação EDP, é tirar partido dos contactos e conhecimentos que a empresa foi acumulando desde que começou a reunir a sua colecção de arte, pondo-os ao serviço de uma região que tem no turismo um imenso potencial de crescimento: "Quando a EDP constrói uma barragem, temos de nos perguntar o que tem a população local a ganhar com isso, para além de um incentivo temporário à economia da região. O que é que fica? Com este programa queremos lançar as bases de algo que é permanente através de um roteiro de arte contemporânea que pode servir o turismo."

Figueiredo acredita que esse roteiro, de que fazem parte a intervenção de Pedro Cabrita Reis na barragem de Bemposta e a de Pedro Calapez na de Picote, cujo aumento de potência foi ontem inaugurado (ver texto ao lado), "vão ajudar a vender melhor a região do Douro", reforçando-a com uma "oferta artística de grande qualidade", a que se juntarão, depois, "projectos arquitectónicos de prestígio", a começar pelo de Souto de Moura.

Os arquitectos que serão convidados a desenhar edifícios de comando e outras estruturas nas novas barragens, como a do Sabor e de Fridão, não estão ainda escolhidos, mas a intenção da EDP, expressa num documento ontem divulgado, é "privilegiar nomes consagrados que funcionem, logo a priori, como um "activo"". Na arte contemporânea, que deverá estender-se a 13 barragens, a maioria construídas (ver infografia), estão seleccionados mais quatro nomes - Julião Sarmento, José Pedro Croft, João Louro e Fernanda Fragateiro -, embora não se saiba ainda em que espaço vão trabalhar.

Por agora, os custos desta associação da arte às barragens só podem avaliar-se pelos montantes pagos a Calapez e Cabrita Reis: 150 mil euros para cada um destes projectos "chave na mão" (criação e execução). "Este investimento em arte e arquitectura parte de uma intenção de criar património que valha a pena, que valorize um território em que uma barragem nem sempre é bem recebida."

Unidade plástica

Os protestos relativos ao projecto de Cabrita Reis para a Bemposta - o artista fez pintar de amarelo o paredão e alguns dos muros de contenção - partiram de associações ambientalistas e da população. Acusavam o artista de desvalorizar o impacto da obra no parque natural e nos seus habitantes e a EDP de não ter pedido autorização.

Cabrita Reis foi buscar a nova cor da Bemposta à maia, espécie de giesta que cobre os montes circundantes a partir do fim de Maio, e chamou à sua intervenção Da cor das flores. Objectivo: "Usar o amarelo para dar uma unidade plástica a uma multitude de marcas no terreno, composta por casas e casinhas que criam um rendilhado caótico e complexo", explica o artista, que soube o que queria fazer na barragem assim que ali chegou com Calapez. "Este projecto era uma oportunidade única de trabalhar a uma escala que permite levar as ideias longe e explorar a eterna questão da relação do homem com a natureza, que na Bemposta é de uma magnitude extraordinária, emocionante."

Nunca foi sua intenção usar a cor como uma provocação. Assumindo que é função do artista criar condições para o novo numa sociedade que é renitente à mudança, diz que a população vai acabar por se habituar. "Era preciso que a mão do homem se arriscasse a ambicionar ter uma dimensão igual à da natureza, que ali tem uma ordem escondida e é brutal, esmagadora, agreste, bela, viva - o contrário absoluto do jardinzinho."

71 painéis

À "gigantesca flor amarela" que se espalha pela encosta, entre o rio e o céu, e que quer contribuir para a integração da barragem no território, Pedro Calapez contrapõe 71 Volt (magia eléctrica), na sala das turbinas de Picote, a 160 metros de profundidade. É uma série de 71 painéis em vidro temperado, divididos em quatro grupos e carregados de sinais ligados à energia. São rodas dentadas, símbolos de água, geradores, válvulas e postes de alta tensão. Calapez explica: a obra, que se inspira numa série de pinturas murais do francês Raoul Dufy, evoca "uma janela colorida num espaço onde só a luz artificial existe e a noção da passagem do tempo é difusa"

Para chegar à "grande caverna" com um pé-direito de 12 metros de altura e as paredes rochosas, é preciso percorrer um longo túnel, com uma imagem de Santa Bárbara à entrada. Esse túnel fascinou Calapez, que em criança visitava barragens com o pai. "A desmesura daquele espaço marcou o que acabei por fazer, depois de muitos desenhos. Gostava que a obra ajudasse a transformar aquele espaço utilitário num lugar de contemplação e autoconhecimento, pelo menos às vezes." Cabrita também quer que Da cor das flores leve quem a vê a olhar para si próprio. "Na natureza há algo de igreja, não interessa o credo. E nas igrejas há um desejo de absoluto. Fico feliz se as pessoas pararem na Bemposta para pensar." Pinharanda resume o resultado: "Cabrita transforma para integrar na paisagem, num gesto heróico; Calapez devolve-nos a interioridade, preciosa e delicada."

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