Vítor Gaspar: é “insultuoso” pensar que fui o quarto elemento da troika

Em entrevista exclusiva ao PÚBLICO, o antigo ministro das Finanças diz ter sido um negociador bem-sucedido e considera que "as dimensões humanas e sociais do programa de ajustamento foram sempre tidas em conta." Para Vítor Gaspar, a ideia de punição "nunca se aplicou a Portugal".

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Vítor Gaspar: “Cada Estado da zona do euro tem de ser responsável pelas consequências das políticas que segue” Nuno Ferreira Santos

Sete meses depois de ter abandonado o Governo, Vítor Gaspar aceita tornar pública a sua visão da crise em Portugal e na Europa. No livro de Maria João Avillez agora publicado, e que é lançado esta terça-feira, no Centro Cultural de Belém, não há fase da sua vida intelectual e política que fique de fora, permitindo um conhecimento mais profundo do homem que teve nas mãos durante dois anos o duro programa de austeridade que tivemos que cumprir. A Europa e o programa de ajustamento do país foram os temas centrais desta entrevista, que não podia ser sobre tudo. Mas também aí não há a mais ligeira brecha no seu pensamento.

Sugeriu que começássemos pela citação, que faz no livro, do grande historiador oitocentista Oliveira Martins e que, no seu entender, define ainda hoje o nosso desafio enquanto país. Ele refere que temos de acumular recursos para sermos um país autónomo. Por que é que vai buscar esta ideia para compreender a crise que estamos a atravessar?
A ideia não é entender a crise, mas entender o ponto de vista português face à crise. O que Oliveira Martins diz, num curto ensaio que acho absolutamente brilhante, é que Portugal está a enfrentar pela terceira vez em 250 anos uma questão existencial. Nas palavras dele, e estou a parafrasear, Portugal enfrentava a questão de saber se tem recursos suficientes para viver como país autónomo dentro das suas fronteiras continentais europeias. Essa questão existencial volta a colocar-se agora, de uma forma ligeiramente diferente. A crise da qual Oliveira Martins falava era a crise de 1892. A crise que enfrentamos agora é a primeira crise financeira da área do euro, que se manifestou, ela própria, dentro da crise financeira global.

Qual é a questão que se coloca a Portugal neste contexto? É saber se temos a vontade política, a capacidade social e cultural para nos afirmarmos como Estado autónomo e desenvolvido numa economia global muito concorrencial, e como membro pleno na área do euro e da União Europeia (UE). É uma questão existencial muito semelhante à que foi colocada por Joaquim Pedro Oliveira Martins.

Com uma diferença: o contexto europeu e internacional é hoje completamente diferente. A nossa escolha pelo euro foi uma escolha política – tal como o próprio euro foi uma escolha política. De alguma maneira, preparámo-nos mal para viver com uma moeda forte. E agora temos de dar essa volta, mas não temos de a dar sozinhos.
Julgo que é preciso perceber as semelhanças e as diferenças. Não é verdade que, no século XIX, Portugal estivesse diplomaticamente isolado. O período da segunda metade do século XIX é muitas vezes caracterizado como o período da primeira globalização. E é também o período do padrão ouro, em que a moeda é também extraordinariamente forte. Portugal foi o primeiro país a juntar-se à Inglaterra no padrão ouro internacional. Foi pioneiro por causa das relações políticas com a Inglaterra. É preciso ter em conta as semelhanças. Mas tem toda a razão quando diz que há diferenças importantíssimas. Uma das diferenças principais é que, ao contrário do padrão ouro, um padrão monetário que funcionava por adesão unilateral de cada Estado de uma forma quase automática, a área do euro é uma iniciativa política que tem como ponto de partida a existência de instituições europeias com responsabilidades bem definida, nomeadamente o Banco Central Europeu (BCE) e o Euro-sistema…

Que nos coloca numa situação completamente diferente. O próprio projecto europeu não é só o défice e a dívida, mas também convergência económica, que não houve na primeira década da moeda única. Não devemos olhar para a crise nacional também deste ponto de vista, em vez de dizer que, desde sempre, a culpa é nossa?
A sua pergunta é extraordinariamente complexa. Se eu tivesse de definir a Europa como projecto político, diria sem qualquer hesitação que, depois de uma primeira fase do século XX caracterizada pelas guerras mundiais mais destrutivas que a humanidade conheceu…

... Uma delas, aliás, a seguir à primeira globalização...
Tal e qual. A UE foi e é o meio de preservação da paz na Europa num quadro de relações internacionais pacíficas entre Estados caracterizados por democracia, Estado de direito e respeito pelos Direitos Humanos. E, consequentemente, a Europa aparece claramente como um projecto político.

A Europa mudou. Há hoje um país que volta a ser central e que goza de uma espécie de “unipolaridade” europeia. É em face desta Europa que está a emergir que nos temos de situar. Como ministro das Finanças, aceitou a visão alemã desta crise. Porquê?
Não estamos a funcionar dessa maneira que descreve, mas de uma forma completamente diferente. Nós tivemos e temos uma crise na área do euro, que põe a descoberto uma série de problemas fundamentais a nível nacional e a nível europeu.

Vários Estados-membros não aproveitaram a participação na área do euro para adaptarem a forma de funcionamento das suas economias às exigências dessa participação. Isto é, vários Estados-membros não conseguiram executar reformas estruturais suficientemente profundas para a exigência de pertencer ao euro. Mais: em alguns deles esta debilidade foi agravada pela existência de desequilíbrios que têm a ver com excesso de endividamento: nas famílias, nas empresas e no próprio sector público. No funcionamento da Europa, existe, na minha leitura, um ponto politicamente fundamental, que é o primado da dimensão nacional da política. Esse princípio significa, basicamente, que cada Estado-membro da área do euro tem de ser responsável pelas consequências das políticas que segue. Por isso, o Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação ("Tratado Orçamental") e as regras de disciplina orçamental que estão nos chamados Six-Pack e Two- Pack [um conjunto de leis que passam a determinar os equilíbrios macroeconómicos da zona euro] são tão importantes. Sem um princípio de responsabilização efectiva pela sustentabilidade das finanças públicas em cada Estado-membro, não é possível sustentar a área do euro.

Do lado europeu, verificou-se também que as regras fundamentais que estavam acordadas no Tratado de Maastricht e no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) não foram cumpridas…

Pela Alemanha e pela França…
Logo em 2003, a Alemanha e a França estiveram no centro desse episódio e verificou-se também que a construção institucional da área do euro não estava desenhada de forma a garantir a robustez da união monetária em condições de crise. Daí a necessidade de se avançar para a união bancária. Tenho defendido que é preciso ir ainda mais longe e construir uma verdadeira união financeira.

Um diplomata alemão, citado pela Der Spiegel, punha as coisas assim: a Alemanha não pode desperdiçar esta crise para reformular a união monetária à sua imagem e semelhança. São eles que o admitem e que estão em condições de o impor. Ora, as coisas são mais complicadas do que a questão financeira. Têm uma dimensão social, económica, política …
Julgo que o que acaba de dizer sobre a Alemanha está errado. Em primeiro lugar, a ideia de encarar uma crise como oportunidade é uma ideia generalizada. O primeiro chefe de Gabinete de Obama, Rahm Emanuel, tem uma frase muito conhecida: “Não podemos permitir que uma boa crise seja desperdiçada.” É uma frase óptima. Muitas vezes, em Portugal, se falou também da necessidade de resolver alguns problemas estruturais profundos da economia portuguesa, que têm persistido durante décadas, precisamente num momento de crise. Porque, naturalmente, as mudanças mais profundas são motivadas por crises. Além disso, a ideia de que a crise é muito mais do que financeira e que a construção europeia é fundamentalmente um projecto político, é uma percepção muito forte na Alemanha. Quando, na década de oitenta, comecei a participar em negociações europeias, um dos países em que o debate político sobre a integração europeia era mais forte era, justamente, a Alemanha.

Ainda agora é.
A posição mais comum na Alemanha era que à unificação monetária tinha de corresponder uma unificação política. A disponibilidade para avançar para soluções mais profundas em termos de integração política tem vindo mais da Alemanha do que de outros países. De entre algumas coisas que disse e que me pareceram menos correctas, parece-me particularmente datada a ideia implícita de que a dimensão financeira da crise seria destacada pela Alemanha e que outros teriam uma visão mais ampla.

Talvez não me tenha feito entender. É verdade que, em Maastricht, Helmut Kohl queria ia muito mais longe em termos de união política e François Mitterrand não quis. O que lhe queria dizer é que esta crise veio alterar o equilíbrio de poder interno da União Europeia, dando à Alemanha um papel que ela, até agora, nunca tinha tido. Estou a apresentar um facto.
Julgo que está fazer muito mais do que isso. Uma das perspectivas que aprendi com John Maynard Keynes é que, num processo de ajustamento internacional, há uma profunda assimetria entre o que podem fazer os países credores e o que podem fazer os devedores. Quando olhamos para a história da integração monetária europeia, temos essa assimetria entre países deficitários e superavitários logo no mecanismo cambial do Sistema Monetário Europeu (SME) e voltamos a ter agora, com a união monetária. Ora, durante a década de 80, o tipo de argumento que se está a invocar agora sobre a hegemonia alemã e a assimetria do processo de ajustamento era invocado precisamente a respeito do funcionamento do mecanismo cambial. Também nesse mecanismo, a âncora do sistema era o marco, a credibilidade era a do Bundesbank e eram os países com moeda mais fraca que suportavam o fardo do ajustamento.

Esteve durante muitos anos em Bruxelas e em Frankfurt, com uma visão exterior sobre a nossa realidade…
Só para mostrar que a minha resposta anterior é absolutamente terra a terra, já reparou que as restrições que o Presidente François Mitterrand enfrentou no início da década de 80 são exactamente iguais às que enfrenta hoje François Hollande?

Que também mudou de política económica, como Mitterrand, aliás pela mão de Jacques Delors. Hollande teve de render-se à realidade porque precisa de manter uma relação forte com a Alemanha…
Essa ideia parece-me um pouco limitadora. Deixe-me ilustrar o paralelo um pouco mais. A viragem de política associada a Jaques Delors foi crucial na década de 80, não só para assegurar a “desinflação competitiva”, como foi chamado na França, mas também foi crucial para a Europa. Essa viragem francesa viabilizou o aprofundamento da integração europeia, que se traduziu muito pouco tempo depois no projecto do Mercado Interno, no reforço da coesão económica e social e, finalmente, no projecto de unificação monetária: a criação da área do euro. Ora, isto ilustra perfeitamente o ponto que procurei dizer anteriormente sobre o primado da dimensão nacional da política. É preciso que as políticas nacionais tornem o aprofundamento da integração europeia possível.

Esteve muitos anos fora, trabalhando em instituições europeias fundamentais para a nossa vida. Voltou porque pensava que essa capacidade de entendimento da forma como a Europa funciona era útil para o país…
Voltei para Portugal porque gosto de viver cá.

Esteve dois anos na pasta mais importante do Governo. Quando se foi embora, considerou que a sua credibilidade tinha sido posta em causa por causa das metas não cumpridas do défice. Tivemos de fazer em três anos aquilo que se deveria ter feito em 10. E, ainda por cima, com escassa capacidade de projectar um futuro que justificasse os sacrifícios. Sem qualquer ofensa, o Vítor Gaspar foi olhado como o quarto dos Três Mosqueteiros [da troika]. Como se viu nesse papel?
Há pelo menos quatro coisas muito diferentes na sua pergunta. Com o devido respeito, a questão de me encarar como o quarto elemento da troika é simplesmente insultuosa.

Mas foi uma ideia bastante generalizada na opinião pública.
Recuso completamente esse papel. O meu papel é o oposto. Tive a honra de representar Portugal nessas negociações. A troika estava sentada do outro lado da mesa. As relações com as equipas da troika foram sempre boas, base fundamental para melhor defender os interesses de Portugal.

O segundo aspecto em que, com o devido respeito, também não está correcta, é relativamente à questão que levanto na minha carta de demissão relativamente à minha própria credibilidade.

Diz explicitamente isso.
Não, digo coisa diferente: o não-cumprimento das metas originais – repito, originais – do programa minou a minha credibilidade. A Teresa falou em incumprimento repetido. Não houve sequer incumprimento, de um ponto de vista formal. Porque as metas iniciais do programa foram renegociadas antes do momento em que o seu incumprimento se colocaria. Isto é, no momento em que os vários números do défice foram constatados, eles estavam conformes aos limites quantitativos do programa em vigor no momento da verificação. A negociação foi sempre feita atempadamente.

Então por que é que se foi embora?
Porque, do ponto de vista interno, escolhi dar uma grande visibilidade política aos limites iniciais [do défice] fixados pelo programa. Podia não o ter feito. Mas fi-lo por escolha política e, consequentemente, quando constatei que não era possível cumprir aqueles limites iniciais, era natural que as consequências políticas fossem assumidas por mim.

Mas essas revisões da meta do défice deveram-se a uma coisa que não estava prevista no programa inicial, que era a recessão generalizada na Europa.
O factor de que fala é importante. A crise global, no momento da aplicação do programa português, está a passar pela fase aguda das crises da dívida soberana na zona euro. E esse período vai de Junho de 2011 até Julho de 2012.

Com a intervenção do presidente do BCE.
As declarações do presidente do BCE em Londres [quando Mário Draghi afirma que o BCE fará tudo o que está ao seu alcance para salvar o euro] que, por sua vez, vêm a seguir à decisão do Conselho Europeu de avançar com o aprofundamento da união económica e monetária. Mas é nesse período entre 2011 e 2012 que a área do euro e a Europa são o epicentro da crise económica global. E essa evolução foi substancialmente mais gravosa do que estava previsto. É também verdade que Portugal não se conformou com o que estava previsto no programa de ajustamento, o que também aconteceu noutros programas. Em momentos de crise, a previsão económica é particularmente difícil e, consequentemente, não é de esperar que os programas possam ser executados exactamente como foram desenhados

Os resgates à Grécia, Irlanda e Portugal foram desenhados pela primeira vez para países sem moeda própria. Ora, enquanto nós tentávamos disciplinar as contas e comer o pão que o diabo amassou, as instituições credoras discutiam animadamente por cima das nossas cabeças se o programa estava certo ou errado e admitiam que tinham errado nas previsões para o desemprego. É um debate que não leva em consideração o lado humano da aplicação do programa.
Acho que o que está a dizer é falso. Em primeiro lugar, as dimensões humanas e sociais do programa de ajustamento foram sempre tidas em conta, com ênfase para o fenómeno do desemprego. A minha maior preocupação tem sido o desemprego jovem e o desemprego de longa duração. O desemprego subiu para níveis muito elevados, atingiu um máximo de 17,7 no primeiro trimestre de 2013, com o desemprego jovem em 42,1 por cento. Estes números são muito importantes do ponto de vista económico, social e individual. Os custos são elevados e prolongados no tempo. Contudo, não é verdade que Portugal tenha tido uma evolução destes indicadores mais gravosa do que a de um país como a Espanha, que teve um programa apenas para o sector financeiro. E, de resto, um dos aspectos mais positivos da viragem em 2013 foi a queda do desemprego e do desemprego jovem para 15,3 por cento e 35,7 por cento, respectivamente, no final do ano.

Mas há um histórico de taxas de desemprego elevadas em Espanha, que nós não tínhamos.
No início da crise global, o nível de desemprego era muito semelhante nos dois países ibéricos. Em qualquer caso, a surpresa com o aumento do desemprego em recessão também se verificou nos Estados Unidos.

E está a descer muito rapidamente, ao contrário do que se passa deste lado.
A viragem cíclica dos EUA ocorreu mais cedo. O comportamento do desemprego jovem e de longa duração, sendo uma questão absolutamente decisiva, não é específico dos programas de ajustamento. Quando Ben Bernanke faz o balanço dos anos em que esteve à frente do FED [Reserva Federal norte-americana], a questão do desemprego, incluindo o de longa duração, aparece como a preocupação central. Agora repare, foi dito e reafirmado que os programas avaliados trimestralmente, em particular o português, foram adaptados às circunstâncias

E foram mesmo?
E foram mesmo. Julgo ter sido um negociador bem-sucedido em nome dos interesses nacionais, precisamente porque foi possível ajustar duas vezes, e muito consideravelmente, os limites do défice e da dívida sem que tenha havido a menor perturbação nas nossas relações com os credores oficiais e com os mercados financeiros. Julgo que não é possível apontar nenhum outro caso em que o processo tenha sido conseguido com esse grau de tranquilidade.

Falta ainda a questão do tempo que nos foi concedido… Um ajustamento em três anos que deveria ter sido em 10.
Colocada dessa forma, a questão permite olharmos para Portugal em dois horizontes de tempo. A necessidade de ajustarmos do ponto de vista das políticas estruturais e da alteração do regime de finanças públicas era absolutamente clara logo em 1998. A crise da área do euro começa a manifestar-se de forma específica no final de 2009, ou seja, no fim da primeira década da nossa participação. Tivemos dez anos para nos ajustarmos. Passámos basicamente esses dez anos em situação de défice excessivo e excesso de despesa financiada a crédito. Se virmos os resultados da alteração estrutural do nosso regime de finanças públicas, verificamos que não fizemos a mudança que era necessária. Como também não fizemos a mudança necessária em políticas estruturais que permitissem continuar a melhorar a competitividade da economia portuguesa e garantissem a flexibilidade no mercado do produto e no mercado de trabalho. Em todas essas dimensões, não conseguimos adaptar-nos às exigências da área do euro. O resultado foi um crescimento real dos mais baixos da área do euro e uma quebra brutal face aos valores do crescimento em Portugal na segunda metade do século XX. E mais: no momento em que se verifica a crise global, não só não reconhecemos que estamos num momento de crise e numa posição vulnerável, em virtude dos desequilíbrios que acumulámos nestes dez anos, mas achamos, pelo contrário, que estávamos em posição de seguir uma política keynesiana clássica de combate da recessão, com a expansão do sector público. Isso conduziu a que, no início de 2010, os mercados financeiros internacionais tenham deixado de financiar. Isso acontece na Primavera de 2010…

... Com a Grécia...
Imediatamente antes do pedido de resgate grego. É esse o momento decisivo para nós. A partir do momento em que entrámos nesse ciclo, a possibilidade de ajustamento gradual e racional estava fechada. E estava fechada porque actuámos mal no período de participação no euro e da própria crise global.

Está sempre a repetir uma frase – “os nossos credores internacionais” –, insistindo que nos estão a ajudar. Nunca leva em conta que os nossos parceiros europeus também nos ajudam no seu interesse próprio, nomeadamente a Alemanha. Devia haver um discurso mais “europeu” nestas questões da ajuda...
A posição de que estamos a falar, segundo a qual o ajustamento nacional é uma componente importante do processo, não é uma posição exclusivamente alemã. Não conheço nenhum país que conteste esta posição, que está traduzida no quadro orçamental aprovado por todos os Estados-membros no decurso desta crise. De acordo com a minha melhor capacidade de entendimento, esta posição é consensual. Aliás, consensual num espaço geográfico mais lato do que a Europa. Não há absolutamente nenhum membro da OCDE que defenda a insustentabilidade orçamental, a reestruturação da dívida, o não-pagamento da dívida…

Ninguém pode defender isso, mas o caminho foi sempre visto como não tendo discussão nem alternativa. Independentemente das consequências que tivesse no terreno.
Não. Isso é falso como caracterização das opções do país como membro do euro. Como vimos, o país podia ter ajustado na primeira década do euro…

O problema é que não ajustou...
Certo. Quando podia ajustar, não ajustou. Mas então como é que é?

Está hoje a fazê-lo em condições muito difíceis…
E então?

E então, a União Europeia não é uma instituição internacional como as outras. Já quase nos esquecemos, porque está tudo mais ou menos calmo, mas a mensagem da punição aos perdulários que ouvíamos dia após dia …
A punição nunca se aplicou a Portugal.

Nunca?
Se compararmos Portugal, por exemplo, com a Espanha e a Itália, verificamos que a evolução macroeconómica do nosso país – por exemplo, a actividade económica – é da ordem de grandeza desses dois países. Não tem nada a ver com a Grécia.

A Grécia aceitou o programa de forma reticente…
Exactamente. E nós não. A redução da actividade económica na Grécia foi três vezes maior do que em Portugal. Os custos do desemprego, incluindo o jovem e de longa duração, não têm qualquer semelhança com os de Portugal. A situação e as perspectivas para a Grécia e para Portugal não têm qualquer comparação. Como dizia a Joaquim Pedro Oliveira Martins, quando se está numa crise financeira, é crucial ter um entendimento com os credores. Isto aplica-se hoje como se aplicava no século XIX. Os nossos credores não são os nossos parceiros.

O FMI não é, mas é a União Europeia…
Quando destaco os credores, estou a pensar na necessidade de assegurar o financiamento normal do Tesouro e da economia portuguesa nos mercados privados. São mercados globais onde outras regiões geográficas têm um peso muito importante.

Em qualquer caso, digo-lhe que beneficiámos da solidariedade europeia de várias maneiras. Desde logo, entre a queda súbita de financiamento na Primavera de 2010 e o nosso pedido de ajuda internacional, o financiamento da economia portuguesa foi basicamente canalizado pelo sistema bancários português que se financiou junto do Euro-sistema. Depois tivemos ajuda oficial, sem a qual teria sido impossível honrarmos os nossos compromissos desde o Verão de 2011.

A minha observação, insisto, tem a ver com o facto dos nossos parceiros do Norte terem um interesse próprio na sustentabilidade do euro. Na Alemanha, há cálculos feitos pelo Ministério das Finanças e por instituições privadas que mostram como, ao contrário do que é contado aos alemães, Berlim pagou pouco e beneficiou muito com a nossa crise.
Há interesses nacionais e há o primado da dimensão nacional da política e isso aplica-se a Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e também à Alemanha, à Áustria, à Finlândia, etc. A dimensão nacional da política aplica-se a todos os Estados da União Europeia. Há o reconhecimento do interesse europeu numa solução para esta crise e essa solução é um bem comum europeu, que é de todos. Esse bem comum tem uma força de agregação muito forte, como as acções políticas do Verão de 2012 mostram e revelam.

Em segundo lugar, nós tendemos a caricaturar as posições dos outros países, o que é normal. Mas, olhando para o debate nos diversos países, verificamos uma grande diversidade de pontos de vista. O debate sobre a Europa na Alemanha é muito intenso e muito diverso.

Saiu há sete meses, quando ainda estávamos numa fase em que muita gente previa uma espiral recessiva. Hoje, verifica-se que isso não aconteceu e que a economia começa a dar um ligeiro ar da sua graça. Isto deixa-o confortado com as suas posições?
Acho interessante referir que, no momento em que saio, a 1 de Julho, está a acabar o segundo trimestre de 2013, o primeiro a registar um crescimento em cadeia positivo (1,1 por cento). O crescimento acumulado desde o fim do primeiro trimestre foi de quase 2 por cento. No segundo trimestre, talvez se recorde, eu, ainda como ministro, falei da viragem para o investimento. Não foi uma perspectiva com grande aceitação, mas revelou-se completamente correcta. O que temos verificado foi que, depois de eliminado o desequilíbrio financeiro externo, a procura interna começou a comprimir mais devagar e, como nós temos tido sempre um aumento muito forte das exportações, isso puxou a economia de uma forma que parece compatível com um ajustamento bem-sucedido. No último trimestre de 2013, ao forte contributo das exportações junta-se um contributo, agora também positivo, da procura interna.

A nível europeu, a retoma ainda é débil, sobretudo quando comparada com os EUA e o Reino Unido. Este risco de deflação de que agora toda a gente volta a falar, como é que o vê?
Deixe-me tentar responder-lhe com ordem. A questão do risco de deflação ou de inflação é sempre discutida no âmbito do mandato que tem um banco central em geral, e o BCE em particular, que é a manutenção da estabilidade dos preços. E a manutenção da estabilidade dos preços no médio prazo é, de acordo com um consenso em todo mundo, encarada como uma inflação baixa e estável. Mais precisamente: uma inflação de médio prazo de cerca de 2 por cento.

É essa precisamente a meta europeia.
Exactamente. Mas a Europa, nesse aspecto, foi pioneira a nível global. A definição de 2 por cento como norma para a estabilidade dos preços é adoptada pelos Estados Unidos durante a presidência de Ben Bernanke. A ênfase na estabilidade dos preços implica que existe um balanço entre os riscos de inflação e de deflação.

É este balanço que o BCE tem de garantir?
É esse balanço que todos os bancos centrais têm de garantir. A questão tem relevância presente para o BCE. O quadro em que se discute agora o risco de deflação na Europa pode ser sumariado com base nas previsões que foram divulgadas recentemente pelo FMI. O fundo dizia, relativamente à economia mundial, que as perspectivas estavam a melhorar, com uma revisão ligeira em alta das previsões de crescimento, havendo condições para que a recuperação nas economias avançadas, que incluem a área do euro, compense algum abrandamento do crescimento nas economias emergentes.

É este o momento de responder à sua pergunta. A deflação é um risco que deve ser evitado porque é tendencialmente desestabilizador e há uma potencial relação entre deflação e espiral recessiva, na medida em que há a possibilidade de a deflação se transformar em deflação esperada, adiando as decisões de fazer despesa. E a deflação torna mais difícil a gestão de níveis de endividamento elevados.

Mas há hoje esse risco ou não há?
Repare que a deflação que cria problemas deste tipo é não só a deflação resultante de uma queda de preços, mas a deflação vista pelas empresas e pelas famílias como expectativa da queda de preços. Olivier Blanchard, o economista-chefe do FMI, disse que, de acordo com os modelos do FMI, a probabilidade de verificação de crescimento negativo de preços na Europa estava entre 10 e 20 por cento. Já tivemos quedas de preços na área do euro em 2009. Mas, quando os preços caíram para 0,7 por cento, não houve expectativa de deflação. As expectativas continuaram perto dos 2 por cento. A queda de preços revelou-se de curta duração. Os preços recuperaram sem que as expectativas de deflação tenham sido desestabilizadoras. Também agora expectativas de inflação de longo prazo continuam bem ancoradas pelo objectivo da estabilidade dos preços do BCE. Como garantia adicional, o BCE tem repetido que está muito atento ao risco de deflação e que está pronto a actuar para o evitar.

A Europa escolheu uma determinada via para combater as consequências económicas da crise financeira global. Os EUA escolheram outra via. De resto, em todas as reuniões do G20, há este confronto permanente entre Obama e a chanceler alemã sobre qual é a melhor receita – a dela ou a dele. Aparentemente, o modelo americano está a dar mais resultado. Como é que olha para isto?
Eu julgo que é comum na imprensa exagerar as diferenças e subvalorizar alguns aspectos comuns. Um dos aspectos que me parecem mais notáveis nesta crise global é a cooperação entre os bancos centrais. Desde 2007, tem existido um grau de cooperação e uma convergência de políticas sem precedentes.

Mas as duas economias que mencionei estão a crescer…
Podemos olhar para os EUA, a Alemanha e o Japão.

Nas Alemanha, se não me engano, a previsão de crescimento é abaixo de 1 por cento. Chega?
A comparação desses valores numa base anual não é particularmente significativa. Se olharmos para as previsões de crescimento para 2014-2016 do Consensus (que agrega as previsões de cerca de 250 especialistas de todo o mundo), o crescimento previsto para o produto real por trabalhador para os EUA, o Japão e a Alemanha é virtualmente idêntico. É superior a 1 por cento em todos os países e em todos os anos que referi.

Mas a preocupação do BCE com o desemprego não é da mesma natureza dos bancos centrais inglês e americano. Neles, a taxa de desemprego é o objectivo.
Não. A formulação do objectivo estatutário é decorrente dos Tratados e idêntica à do BCE. O FED tem um objectivo dual. No entanto, a forma de conduzir a política monetária dos dois lados do Atlântico baseia-se na manutenção da estabilidade dos preços e na estabilidade da actividade económica em torno do produto potencial.

Desculpe insistir nesta ideia. Há um pequeno ensaio de Tony Judt, escrito em 1996, no qual ele diz que “a Europa ou será alemã ou não será”. Uma ideia simples que agora começamos a pensar que faz algum sentido. Neste modelo que estamos a construir para a zona euro, parece que temos todos de ser um pouco mais alemães. Ora, a integração europeia sempre assentou no respeito pela diversidade dos seus países, obrigando ao compromisso permanente entre interesses e culturas distintas. Como se restaura esse equilíbrio?
É muito interessante o que está a dizer. Tenho e li esse livro. Não foi o livro de Judt que li com maior atenção. É um autor que descobri há uns seis ou sete anos. Encontrei esse livro depois de já ter lido muita coisa dele. Não lhe prestei uma atenção extraordinária…

Mas este título faz-nos pensar...
Eu leria essa observação à luz de Friederich Hayek. Não sei se leu um artigo do Hayeke de 1939, que se chama Economic Interstate Federalism

Não. O único que li foi o Caminho para a Servidão.
O ponto que Hayek faz é parecido com o que está a dizer. A Europa é e deve ser muito diversa. Ele usa esse aspecto da diversidade política e cultural da Europa como um dos factos básicos do seu artigo, sendo que o outro é o seguinte: se a federação for muito integrada do ponto de vista do comércio de bens e serviços e do ponto de vista financeiro, então haverá uma série de políticas que não podem ser exercidas a nível nacional porque não seriam eficazes ou arriscariam a fragmentação do espaço interestadual da União. A conclusão que tira é que muitas das competências que são exercidas a nível nacional não serão exercidas a nível da União, não porque conceptualmente não o possam ser, mas porque a diversidade cultural e política significará que não haverá consenso para o fazer. Concluía, em 1939, que o sistema, para assegurar a coesão de um espaço interestadual, teria de ser baseado em regras e no funcionamento quase automático de políticas. Ora, esse funcionamento...

... Que é o nosso…
É precisamente o caminho que estamos a seguir na Europa.

Gosta de comparar esta crise com a de 83-84. Mas há diferenças, para além do prof. Ernâni Lopes, que todos estimamos, ter um ar muito mais assustador do que o seu. Mário Soares deu-lhe todo o apoio político. O país tinha um objectivo: entrar na Comunidade. Agora estamos a fazer este ajustamento porque queremos ficar no euro. Mas, à nossa frente, só vemos incertezas e não sabemos como vai a Europa sair desta crise. Declarou-se no livro um “optimista céptico” em relação à Europa. O que quer dizer com isso?
Adoro a sua pergunta. No início da década de 80 a Europa estava a viver a sua euro-esclerose.

Mas deu a volta com o Mercado Interno...
Muito mais tarde. A incerteza sobre a Europa no início dos anos 80 era enorme. E não parecia ser um projecto particularmente inspirador. A incerteza que existe hoje, existia também nessa altura, provavelmente numa versão ainda mais pessimista.

Mas significava o regresso à Europa. Era um destino...
Temos a grande vantagem de saber como é que essa história acabou. Nessa altura, estava toda a gente a reflectir sobre as vantagens e os custos da participação. Um dos aspectos em que Mário Soares aparece como político de visão está precisamente associado a esse debate. A única razão que nos leva hoje a ver essa decisão como trivial é porque já faz parte da História. Mas não foi nada trivial na altura. Lembro-me de ver uma publicação oficial do Ministério das Finanças cujo título era qualquer coisa do tipo “Adesão: Custos Certos, Benefícios Incertos”.

Hoje, vejo a situação actual exactamente da mesma maneira. Temos de fazer agora, como tivemos de fazer na década de 80, uma opção sobre o lugar de Portugal no mundo. E, do meu ponto de vista, a opção que devemos tomar é a de querer ser um país desenvolvido, aberto, competitivo na economia global e capaz de se afirmar como membro pleno da área do euro e da União Europeia. Num certo sentido, não seria possível ter um paralelo mais perfeito entre 1984 e 2014.

Como é que explica às pessoas que esta Europa ainda vale a pena?
Como explicaria em 1984. A explicação parte de mobilizar as forças positivas da Europa, que são fortíssimas. Basta pensar que com a crise gravíssima e os desafios seriíssimos que a Europa está a enfrentar, no passado dia 1 de Janeiro o euro integrou mais um país e, no outro extremo da Europa, na Ucrânia, a Europa ainda é um poderoso denominador comum das forças democráticas, como antes tinha sido em Atenas, Lisboa, Madrid, Budapeste, Praga, Varsóvia e Berlim.

 

 


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