Vítimas do Estado Novo não querem que permaneçam símbolos da ditadura em Portugal

Estudo do Instituto de Ciências Sociais conclui que não foi aplicada justiça aos funcionários da PIDE/DGS responsáveis pela repressão durante o antigo regime.

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Daniel Rocha

Nem um museu sobre António Oliveira Salazar em Santa Comba Dão nem uma ponte sobre o Tejo chamada Salazar – as vítimas do Estado Novo consideram que não devem permanecer símbolos da ditadura em Portugal, conclui um estudo realizado por uma equipa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O inquérito procura saber o que pensam as vítimas da ditadura, 90 anos depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926 que pôs termo à Primeira República e deu início ao antigo regime.

O inquérito Memória da Oposição e Resistência ao Estado Novo questionou, em Março e Abril deste ano, 131 pessoas entre os 50 e os 91 anos que, por motivos político-ideológicos, foram alvo de prisão ou detenção, exílio, clandestinidade, afastamento da função pública, expulsão do sistema de ensino, e foram desertores ou refractários. De acordo com as autoras, Filipa Raimundo, Sofia Serra da Silva e Joana Morais, a média de idades destes inquiridos corresponde a 70 anos e quase 80% são homens.

Sobre a construção do museu, 51% dizem que não devia ser permitida, 23% são a favor, e 26% não optam por qualquer posição. Mas na questão da mudança de nome da Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril a opinião é muito mais expressiva: 84% concordam e apenas 5% discordam. “Há uma tendência em Portugal para rejeitar a permanência de alguns símbolos ligados ao Estado Novo”, disse ao PÚBLICO Filipa Raimundo, coordenadora do estudo.

“Salazar não alimentou uma imagem muito carismática com símbolos, e com a ruptura de 1974 os poucos existentes foram eliminados.” Depois do 25 de Abril “permaneceram duas estátuas de Salazar mas uma acabou bombardeada [colocada em frente ao tribunal, em Santa Comba Dão, foi decapitada em 1975 e desfeita em 1978] e outra desapareceu [estava no pátio interior do Palácio Foz, em Lisboa, então sede do SNI – Secretariado Nacional de Informação]”. Pelo contrário, por exemplo, “em Moscovo, as estátuas de Estaline e Lenine foram retiradas de outros locais e concentradas num jardim em Moscovo; em Espanha a estátua equestre de Franco de Santander só foi retirada em 2008”, realça a investigadora do ICS-UL.

Filipa Raimundo, que há anos faz investigação académica sobre “a forma como a democracia portuguesa ajustou contas com o passado”, cruzou alguns dados deste inquérito com um outro do ICS, em 2014, também sobre o Estado Novo e a transição para a democracia, e chegou à conclusão de que há uma notória diferença entre a avaliação dos ex-membros da oposição e resistência e a da população em geral acerca do antigo regime. 94% das vítimas do Estado Novo dizem que este teve mais coisas negativas do que positivas enquanto a população em geral tem uma posição ambígua: 47,2% faz uma avaliação negativa, 31,5% diz que foi tão positivo como negativo e 21,2% tem uma impressão mais positiva que negativa. Apenas 1,8% das vítimas admitem que o antigo regime foi mais positivo que negativo. A análise etária das respostas da população em geral permite perceber que são as faixas nos extremos que têm uma avaliação mais positiva do Estado Novo – os mais velhos porque foram socializados nas décadas antes da guerra colonial, e os mais novos porque não tiveram qualquer contacto com a realidade do antigo regime.

Falta de reconhecimento
O inquérito também procurou saber se as medidas de reparação e de reconhecimento pela resistência ao Estado Novo decididas pelos sucessivos governos desde 1974 foram eficazes e suficientes. Entre elas contam-se as amnistias para quem fugiu do país para escapar ao serviço militar,os refractários, a possibilidade de reintegração a quem fora afastado da função pública ou das Forças Armadas por motivos político-ideológicos, a criação de uma pensão por méritos excepcionais na defesa da liberdade e da democracia – a mesma envolvida em polémica quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusou atribuí-la a Salgueiro Maia mas nos anos 90 foi dada a dois agentes da antiga PIDE -, de subvenções mensais vitalícias por trabalhos forçados no Tarrafal e por participação na revolta de 18 de Janeiro de 1934 na Marinha Grande. Apesar disso, cerca de 72% dos inquiridos consideram que as vítimas “ainda não obtiveram o reconhecimento que merecem”.

As vítimas do Estado Novo também avaliaram de modo muito negativo a forma como a democracia lidou com os funcionários da PIDE/DGS. Cerca de 95% dizem que “não foi feita justiça”, ao passo que apenas 65% da população em geral partilha dessa opinião. “Os seja, aqueles que foram vítimas de repressão e que sofreram directamente as consequências da perseguição político-ideológica consideram claramente insuficientes as medidas adoptadas para punir os responsáveis pela repressão”, afirma Filipa Raimundo.

Para esta avaliação negativa das vítimas terá contribuído o facto de parte dos funcionários da PIDE terem sido detidos mas libertados em seguida, como aconteceu no Porto, terem conseguido fugir do país, ou ainda, apesar de presos preventivamente durante alguns meses, acabarem por receber liberdade condicional do Conselho da Revolução, justifica a investigadora. Dos 2667 processos de funcionários e colaboradores da PIDE enviados a julgamento, dois terços foram condenados a penas entre um e seis meses de prisão, acrescenta Filipa Raimundo.

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