Violência? (II)

A morte de Nelson Mandela trouxe de novo à ribalta o debate sobre a legitimidade da violência como forma de resistência perante a injustiça, a opressão. Não creio ser preciso retomar os exemplos da desavergonhada hipocrisia que por aí vai (Cavaco, Durão Barroso, Cameron e tutti quanti) relativamente ao homem que, em 1964, explicara porque se “sentira moralmente obrigado” a recorrer à violência contra o apartheid perante o tribunal que o condenaria a prisão perpétua. Bastará reler o que ele então disse: “A dura realidade era que a única coisa que o povo africano tinha conseguido depois de 50 anos de não violência era uma legislação cada vez mais repressiva e direitos cada vez mais mitigados. Nesse momento, a violência já se tinha convertido, de facto, num elemento caraterístico da cena política sul-africana”, porque decorria do próprio sistema de “supremacia branca”. “Cheguei à conclusão de que a violência era, neste país, inevitável, seria pouco realista continuar a pregar a paz e a não violênci

O que Helena Roseta disse há dias atrás, no chamado Encontro das Esquerdas da Aula Magna, não é muito diferente: "Quando um povo é privado dos seus direitos e de uma forma violenta se vê privado dos seus meios de subsistência e se vê privado do direito a uma vida decente em todas as idades – em particular na idade mais idosa –, quando isso acontece, toda a doutrina, incluindo a doutrina social da igreja, diz que nesses casos a violência é legítima para pôr cobro à violência" (Negócios online, 22.11.2013). Onde está, afinal, a surpresa? Um dos documentos fundadores da modernidade política e do Estado liberal, a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, não dizia já em 1789, no seu artigo III, que um dos “direitos naturais e imprescritíveis do homem” era o da “resistência à opressão”?<_o3a_p>

Não sei se Roseta pensa que é iminente em Portugal a irrupção da violência por motivos sociais, praticada por quem é vítima desta vastíssima operação de expropriação dos assalariados e dos mais pobres que estamos a viver. Pessoalmente, não estou convencido que assim seja. Nem convencido, nem desejoso – nem ela o estará. A violência dos oprimidos coloca-os, antes de mais, à mercê do imenso poder opressivo do Estado (vale a pena recordar o que hoje sabemos sobre o controlo e a vigilância totalitárias a que estamos sujeitos por parte dos serviços de informação?) e dos ricos que dispõem de dinheiro para pagarem a quem, dentro ou fora do Estado, consiga replicar a violência que este pode praticar. Por outro lado, a degradação moral que é intrínseca à violência física, e que raramente incomoda algum dos opressores que a ela recorre, é o primeiro dos fatores de divisão dos oprimidos. Foi sempre assim na história portuguesa desde o séc. XIX: enquanto as direitas raramente hesitaram em recorrer à violência contra a mudança, as esquerdas dividiram-se perante a utilidade, a finalidade e a legitimidade desta. Se é certo que a ditadura caiu em 1974 pela força militar, é sintomático que tal tenha acontecido sem derramamento de sangue (salvo o dos assassinados pela PIDE no próprio dia 25 de abril). E é identicamente revelador que em todo o processo revolucionário português tenham morrido 16 pessoas por motivos políticos, quase todos assassinados pela extrema-direita bombista – contra quase 591 na tão modelar transição democrática espanhola, quase 200 dos quais, segundo Mariano Sánchez (La Transición Sangrienta, Península), vítimas de violência “organizada, animada ou instrumentalizada pelas instituições do Estado”. Não digo que sejamos uma sociedade imune à violência, nada disso. Digo é que ela não tem, desde há muito tempo, sustentação social representativa no terreno sociopolítico.<_o3a_p>

Estou, sim, convencido que vivemos uma mudança de regime que não precisa (ainda...) de carros armados nas ruas e esquadrilhas aéreas a sobrevoar cidades. Mas a violência está aí, contamina todo o nosso quotidiano. A violência que exerce o patrão sobre o trabalhador, impondo-lhe regras não negociadas, ameaçando-o de desemprego, ainda por cima respaldado por um governo que descreve o processo como “flexibilidade laboral”. A do banco sobre o devedor, o mesmo banco que esbanjou fortunas em aventuras offshorianas para alguns dos seus acionistas, que abriu um buraco negro de proporções cósmicas na nossa economia que está a ser pago por quem sofre cortes salariais que ajudam a tornar impossível pagar dívidas. A violência do ministro que decreta e a do deputado que aprova o empobrecimento dos assalariados e o agravamento da miséria daquele a quem esta violência já despojou do emprego. Ou a violência, muito mais direta, do polícia sobre o manifestante (até mesmo quando ele é outro polícia...) – ou julgar-se-á, por acaso, que todas estas não são formas de violência?<_o3a_p>

A direita bem pode fingir que anda à espera da violência nas ruas. O que ela procura esconder é que a violência já cá está há muito tempo. E não é da responsabilidade de nenhum manifestante.<_o3a_p>
 
 
 
 

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