Vantagens e problemas das eleições primárias do PS

O PS deveria ter revisto previamente os seus estatutos para instituir eleições abertas a não-militantes para a escolha do seu secretário-geral.

A realização de eleições partidárias abertas a cidadãos não-militantes é uma boa forma de abrir os partidos à sociedade civil e reforçar o sentimento de que os cidadãos podem influir nos destinos dos partidos com os quais se identificam e, consequentemente, nos destinos do país. No fundo, as eleições abertas a simpatizantes vêm ajudar a responder a um problema grave das democracias contemporâneas: o afastamento entre eleitos e eleitores.

Estudos recentes mostram-nos que, em Portugal, os níveis de confiança dos cidadãos no regime democrático têm vindo a diminuir, a própria legitimidade conferida à democracia é hoje mais contestada, a avaliação dos cidadãos sobre os partidos, governo ou Parlamento é cada vez mais negativa. Na base de tudo isto estão diversas razões, mas sabe-se que de entre as mais importantes está o facto de os cidadãos sentirem que a sua voz é cada vez menos ouvida pelo poder político, que têm cada vez menos capacidade para influenciar a tomada de decisões políticas. As eleições partidárias abertas ao voto dos não-militantes seriam, então, uma solução para contrariar esta tendência e procurar reaproximar os cidadãos da política.

Foi, então, por isso que as eleições primárias do Partido Socialista foram classificadas como um passo importante na democratização do sistema político português: pela primeira vez, um dos maiores partidos portugueses ofereceu a possibilidade aos seus simpatizantes de participarem directamente numa decisão interna fundamental e estes aderiram à iniciativa, o que demonstrou a existência de uma vontade dos cidadãos de participarem na vida política, da qual se sentem muitas vezes afastados. Inscreveram-se 149.916 simpatizantes – que se somaram aos 98.657 militantes, somando um total de 248.573 eleitores. Tendo em conta que os níveis de participação cívica (em organizações da sociedade civil) e de participação política não-eleitoral (em manifestações, comícios, etc.) dos portugueses são os mais baixos da Europa Ocidental, o número de inscrições tem que ser considerado positivo. Além disso, 70,31% dos eleitores inscritos nestas primárias foram às urnas (ou seja, 174.770 do universo eleitoral), o que significa que estas primárias revelaram uma boa taxa de participação para os padrões nacionais de participação eleitoral – fazendo uma extrapolação, é preciso recuarmos a 1987 para encontrarmos uma taxa de abstenção inferior a 30% em eleições legislativas. Do ponto de vista da participação e mobilização política, as primárias do PS revelaram-se um sucesso e será muito difícil, no futuro, retornar às eleições fechadas a militantes.

No entanto, as vantagens das eleições partidárias abertas a simpatizantes não devem fazer-nos esquecer problemas que estas primárias socialistas revelaram e que deviam ser eliminados em processos futuros. E esses problemas tiveram que ver com o facto de estas eleições abertas terem visado escolher o “candidato do PS ao cargo de primeiro-ministro” e não o seu líder partidário, como deveria ter acontecido.

Desde logo, no nosso sistema constitucional, é o Presidente da República quem nomeia o primeiro-ministro – tendo em conta os resultados das eleições legislativas e depois de ouvidos os partidos, naturalmente, mas sem que esteja constrangido por resultados de primárias –, o que nos diz que a ideia seria sempre um pouco incongruente. Mas, além disso, poucos dias depois de ter sido lançada por António José Seguro, percebeu-se que jamais poderia haver um candidato a primeiro-ministro eleito em eleições abertas a conviver com um secretário-geral derrotado nessas eleições, pois ficou claro que quem ganhasse esta disputa seria o líder de facto do partido. Por isso, Seguro cedo afirmou que se demitiria do cargo de secretário-geral se perdesse a contenda para candidato a primeiro-ministro. Por isso se demitiu e o PS está hoje sem líder de jure. As primárias mostraram que António Costa é novo líder do partido, mas este líder não foi ainda eleito como tal e o seu poder não está regulamentado. Para o conquistar, Costa terá que passar ainda por eleições directas – agora fechadas a não-militantes, numa espécie de repetição pobre deste primeiro acto. E, com tudo isto, o PS despende seis meses em modo eleitoral – correndo até o risco de se ver confrontado com uma crise política sem estar organizado para a enfrentar.

O PS deveria ter revisto previamente os seus estatutos para instituir eleições abertas a não-militantes para a escolha do seu secretário-geral. Seguro mostrou-se sempre contra a ideia de eleições primárias abertas e mudou de estratégia apenas quando foi desafiado por Costa. Mas um partido nunca deveria ter avançado para uma iniciativa como esta à pressa, para um cargo que estatutariamente não existe e sem precaver os efeitos negativos do que será um duplo processo electivo. Se as eleições abertas vieram para ficar, têm que ser adaptadas às realidades partidárias para que as suas vantagens não fiquem anuladas por potenciais problemas institucionais.

Politóloga

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