Uma oportunidade perdida

O mais certo é não haver qualquer debate e acabarmos nomeando alguém para reforçar as características mais burocráticas e menos democráticas da Comissão Europeia.

Por estas horas ou dias o governo nomeará o comissário português (ou, mais provavelmente, comissária) para o próximo mandato de cinco anos à frente dos destinos da União. O assunto parece provocar uma certa comoção entre os partidos e os políticos, mas não passa disso. Comecemos então pela pergunta: que faz ao certo um comissário?

Durante a campanha eleitoral, tentei chamar aqui a atenção para a escolha do presidente da Comissão dizendo, entre outras coisas, que ele teria a última palavra sobre propostas legislativas para 500 milhões de cidadãos. Os comissários estão a montante neste processo: não terão a última, mas a primeira palavra. E ela conta muito: imagine se tivesse o poder de, sozinho, ter uma iniciativa determinante para mudar algo num mercado à escala continental ou para criar e garantir direitos num espaço de liberdade, segurança e justiça que cobre, de uma forma ou de outra, praticamente 28 países. Isso seria só o início, mas supondo que conseguisse convencer os seus colegas no colégio de comissários (incluindo o Presidente), e conduzir a sua legislação pelo Parlamento e pelo Conselho, as iniciativas que tomasse poderiam transformar, para o bem ou para ou mal, as vidas dos europeus — e, indiretamente, dos restantes habitantes do planeta.

Claro que este poder sofreria variações, conforme a sua pasta estivesse relacionada com competências exclusivas da União, partilhadas com os estados-membros, ou meramente supletivas. Mas mesmo em áreas não-exclusivas um comissário com imaginação pode fazer a diferença (o exemplo do Erasmus, na educação). Noutras áreas, um comissário tenaz poderia acabar com os estágios não-remunerados, separar a banca comercial da de investimentos, impedir a vigilância eletrónica da nossa internet ou tornar verdadeiramente eficaz a Carta dos Direitos Fundamentais para os cidadãos da UE. É obra, e não se entende porque se dá tão pouca importância ao caso.

É verdade que compete ao governo nomear o comissário português, mas não está dito em lado nenhum que o tem de fazer de forma opaca, ou como pagamento de favores políticos-partidários. O comissário não vai representar o interesse do governo (o seu juramento de posse obriga-o a seguir o interesse comum europeu). Isso justificaria uma discussão pública sobre o seu perfil, a realização de audições parlamentares nacionais e, a meu ver, a nomeação de uma figura de âmbito nacional e reconhecida visão europeia, independente da sua ligação ao partido no poder. Há quem defenda, também, que para reforçar a componente democrática parlamentar o comissário ou comissária deveria sair do conjunto de eurodeputados que elegemos há um par de meses. Ao menos isso significaria que teríamos discutido e legitimado parcialmente o seu programa europeu.

Infelizmente, o mais certo é não haver qualquer debate e acabarmos nomeando alguém para reforçar as características mais burocráticas e menos democráticas da Comissão Europeia. Uma oportunidade perdida.

Nota: um erro crasso levou-me a falhar as atualizações de preços a que fiz referência na minha última crónica. O texto, cujo sentido não se perde, já está corrigido na versão eletrónica do Público. Aos leitores, o meu pedido de desculpas.

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