Uma campanha suja

Acredito profundamente que quem está na vida pública tem obrigações de transparência e de probidade muito superiores ao comum dos mortais.

Eu tenho leitores devotos que me cobram o silêncio: “Então agora que Pedro Passos Coelho anda a ser investigado você está caladinho, não é?”; “Sobre José Sócrates fartava-se de falar, mas sobre o actual primeiro-ministro nem uma palavra, não é?”; “Escrever textos sobre Zeinal Bava está muito bem — e sobre Passos Coelho?”. Certos leitores ainda me conhecem bastante mal e têm fraca memória: aconselho-os a recuarem seis meses e a lerem o que escrevi sobre Pedro Passos Coelho e o caso Tecnoforma.

Mas atenção, fogosos leitores: tal não significa que mal um novo escândalo espreite na comunicação social deva ir tudo a eito, e que aquilo que é diferente passe a ser tratado como igual, mandando às malvas os critérios na avaliação de cada caso. O caso Tecnoforma é mais grave do que o caso da Segurança Social. O caso PT é mais grave do que o caso Tecnoforma. O caso BES é mais grave do que o caso PT. E o caso Sócrates, a provar-se, é o mais grave deles todos. Dito isto, é verdade que muito boa gente precisa de fazer um esforço para abandonar os dois pesos e as duas medidas, Presidente da República incluído: reduzir a falta de pagamento continuado à Segurança Social por parte de um primeiro-ministro a “um certo cheiro de campanha pré-eleitoral” é um comentário de uma infelicidade confrangedora.

No meu caso, e no que diz respeito às exigências reputacionais dos políticos portugueses, o padrão não muda consoante a cor partidária — acredito profundamente que quem está na vida pública tem obrigações de transparência e de probidade muito superiores ao comum dos mortais. Nesse sentido, é óbvio que a mais recente trapalhada de Passos Coelho não bate certo com a imagem de um político que sempre manteve um discurso moralista a propósito da crise, e que nunca se cansou de acentuar a necessidade de todos cumprirem as obrigações contributivas que têm para com o país. O seu discurso, sublinhe-se, está certíssimo — e é por estar tão certo que ele não pode vir depois sabotar com as suas acções a solidez da pregação.  

Mais: da direita à esquerda, continua a haver por aí uma lamentável confusão acerca do que deveria ser o escrutínio da actividade pública de um primeiro-ministro. Há mesmo quem se apresse a falar, a propósito deste caso, em “campanha suja” e em lamentar por antecipação aquilo que para aí vem. Mas é preciso não entressachar conceitos. Já houve algumas campanhas sujas em Portugal, uma das quais tendo como alvo o próprio José Sócrates basta relembrar, em 2005, as insinuações de homossexualidade, a propósito de uma alegada relação com Diogo Infante. Campanha suja é isso.

Exigir transparência a propósito dos deveres fiscais de um primeiro-ministro ou analisar se os seus rendimentos são compatíveis com o seu nível de vida é uma outra coisa, bem diferente — é um dever dos cidadãos e da comunicação social, que demasiadas vezes, para minha grande tristeza, se esquece de fazer esse trabalho com o devido empenho. Ora, quem gosta de confundir as duas coisas nunca o faz com boas intenções. Porque se investigar, perguntar, chatear, escrutinar é uma “campanha suja”; se conhecer ao mínimo detalhe a forma como um candidato a primeiro-ministro cumpriu as suas obrigações para com o Estado que pretende dirigir é uma “campanha suja”; se exigir hombridade a um político profissional e uma conduta impoluta na sua vida pública é uma “campanha suja”; então dêem-me mais “campanhas sujas”, se faz favor. Elas são tudo aquilo de que Portugal precisa.

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