Um TC "amarrado" entre cláusulas de salvaguarda e responsabilidade política

O receio das consequências políticas da decisão dos juízes pode levar a nova dose de "remédios" sobre as medidas que violem a Constituição.

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A decisão do TC segue-se a outros acórdãos e faz jurisprudência Foto: Enric Vives-Rubio

No ano passado, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu que as normas que analisou eram inconstitucionais, mas deixou que fossem aplicadas excepcionalmente. Poderão este ano os juízes voltar a usar cláusulas de salvaguarda? E devem olhar para o orçamento com sentido de responsabilidade política? As opiniões dividem-se.

Em Julho de 2012, a maioria dos juízes do Palácio Ratton considerou que a suspensão do pagamento dos subsídios de férias ou de Natal à função pública e aos aposentados, prevista no Orçamento do Estado era inconstitucional. Como o ano já ia a mais de meio e a situação económico-financeira do país era especialmente grave, as consequências desta inconstitucionalidade ameaçavam pôr em risco o cumprimento da meta do défice público, reconhecia o TC. A solução foi deixar que essa medida decidida pelo Governo de Pedro Passos Coelho fosse admissível apenas durante 2012.

Porém, os juízes não terão grande margem de manobra para aplicar remédios excepcionais este ano, correndo o risco de fragilizar o TC, retirando-lhe poder e credibilidade. Essa é, pelo menos, a opinião de algumas personalidades contactadas pelo PÚBLICO.

O economista e militante do PCP Octávio Teixeira considera que o espaço de manobra para o TC repetir a cláusula de salvaguarda é “nulo”. Isso implicaria “suspender a Constituição durante vários anos e não está nas mãos do TC esse poder”, diz o militante do PCP. “Desta vez não tem margem de manobra para manobrismos”, vinca Octávio Teixeira.

O socialista Vitalino Canas, que no ano passado foi um dos 25 deputados que pediram a fiscalização do orçamento, lembra que este ano as questões “são um pouco diferentes e mais abrangentes” e admite que o Governo “procurou fugir às inconstitucionalidades do ano passado”. Vitalino Canas considera que do ponto de vista jurídico-constitucional, o TC pode repetir os “remédios” porque isso está previsto na lei fundamental, embora julgue que a própria instituição perceba que isso é politicamente difícil de sustentar.

“Espero que seja um acórdão com um conjunto de equilíbrios milimetricamente definidos com limitação de efeitos em alguns casos”, afirma Vitalino Canas, defendendo que “dada a demora, seguramente será uma decisão de compromisso”.

Francisco Louçã, economista e ex-líder do BE, diz mesmo que “é impossível” ao TC repetir essa manobra porque é a “sua fragilização e desvalorização”: “Um TC que avalia, mas não aplica as normas, e permite que um Governo tenha dois orçamentos inconstitucionais fica muito para lá de descredibilizado. Anula a sua eficácia e o seu valor.”

Para Louçã, o TC está “amarrado” ao seu próprio acórdão do ano passado: “A jurisprudência que deixou é que a desigualdade não é admissível para além do limite mínimo e quem estabeleceu esse limite foi o próprio TC, ao afirmar que ele tinha sido ultrapassado. Por isso não pode repetir o argumento.”

“Manda o bom senso que não se volte a repetir a forma usada em 2012, porque isso é esvaziar a eficácia do TC”, avisa o ex-ministro Bagão Félix. E seria também “generalizar o conceito de que ‘isto é inconstitucional, mas durante este ano não é’”. Bagão Félix lembra ainda que este ano não se pode colar o argumento temporal, que em 2012 “fazia todo o sentido”.

 

Análise política ou estritamente legal?

Passos Coelho afirmou há dias que todos os que têm poder de decisão em Portugal – incluindo o TC, realçou - devem ter a consciência da responsabilidade e consequências das suas decisões. Apesar de o primeiro-ministro vir depois negar, a verdade é que a mensagem foi entendida como uma pressão sobre o TC.

Até que ponto os 13 juízes do Palácio Ratton podem ou devem analisar as normas do Orçamento do Estado com consciência política? Ou será que conseguem mesmo abstrair-se das consequências da sua decisão – seja ela num sentido ou noutro - para o país e para o Governo?

“O TC não pode nem deve analisar a lei do ponto de vista político – para isso temos o Parlamento, o Presidente da República e os partidos -, mas apenas do ponto de vista jurídico-constitucional”, defende Octávio Teixeira. Nem o tribunal deve fazer “jogos políticos. Tem que ser sério na sua análise. E isso implica não aceitar qualquer intervenção política, por pequena ou indirecta que seja.”

Na mesma linha, Francisco Louçã diz que a missão do TC é “cumprir a sua missão de proteger o país de leis inconstitucionais e a sua responsabilidade política é a de respeitar e fazer respeitar a Constituição”, recusando “calculismos políticos ou quaisquer subordinações às intenções do Governo ou da oposição”.

Vitalino Canas recusa ingenuidades: “Qualquer TC, quando aplica a Constituição não pode deixar de ter um contexto político em causa. E as pessoas que ali estão são, no fundo do seu espírito, influenciáveis pelo contexto político.” Embora as decisões daquele tribunal tenham uma “forte ancoragem jurídica na Constituição, nas margens dessas decisões há sempre, obviamente, uma ponderação política”.

Sendo um órgão de soberania, o TC “deve, sim, ter em conta a situação do país. Não se podem analisar e decidir estas coisas numa base zero nem a Constituição é uma cartilha matemática”, argumenta Bagão Félix. É, porém, importante que os juízes tenham noção de que “fugir” a pressões políticas está também nas suas mãos: “Quanto mais tempo o TC demora a decidir uma matéria destas, mais sujeito está à ideia de que a sua decisão é mais influenciada por questões políticas.”
 
 

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