Um político para todas as estações

Deem as voltas que derem, Mário Soares permanecerá como a mais simbólica e destacada personagem do regime democrático saído do 25 de Abril (é certo que Aníbal Cavaco Silva esteve mais tempo no poder e conquistou a primeira maioria absoluta monopartidária, mas entrou tarde em cena, sem direito a lugar na galeria dos pais fundadores).

Para conquistar esse título, o criador e líder histórico do PS soube sempre ver mais claro e mais longe do que todos os outros. Sobretudo em 1975, ano determinante para o seu destino (e o de todos nós), nunca hesitou no rumo a seguir, sintetizando-o firmemente em duas palavras: democracia (implicando liberdade) e Europa. Pode parecer pouco, vago ou até uma banalidade, mas só quem não viveu o PREC (Período Revolucionário em Curso) ignorará quão escassos eram os que tinham então essa visão das coisas tão nítida e intransigente. Nenhum, seguramente, com a proeminência política de Soares.

Na fidelidade a esses objetivos estratégicos, o primeiro chefe de um governo constitucional foi de uma coerência exemplar, já que nunca se desviou deles um milímetro. Quanto à tática, porém, a sua flexibilidade era total, tendo feito e desfeito, ao longo dos tempos, todo o tipo de alianças com rivais e adversários (para ele, em política, não havia inimigos, nem sequer os sobreviventes do antigo regime, que sempre trataria com estima e consideração). Antes da revolução, rompeu com o PCP para dele se aproximar na tentativa conjunta de derrubar a ditadura, mas logo se voltou a afastar nos anos da brasa, definindo os campos do decisivo confronto ideológico do PREC, que venceria em toda a linha. Apoiou o primeiro presidente eleito, António Ramalho Eanes, para o renegar ao fim do seu primeiro mandato. Para liderar um governo de emergência, partilhou o poder com o CDS, que estava do lado oposto do hemiciclo, e mais tarde reiterou o gesto com o PSD. Foi pró-Washington e recebeu ajudas da CIA, como fator de sobrevivência em 1975, para, ao fim de umas décadas, execrar a potência norte-americana e caminhar de braço dado com os alteromundialistas. Aceitou dois resgates financeiros internacionais de Portugal, mas desencadeou o seu último combate para rejeitar as medidas mais gravosas de um terceiro (apesar de ter sido negociado pelo seu partido). Se na fase revolucionária tinha atrás dele toda a direita, civil e militar, e depois teve de «meter o socialismo na gaveta» (usando uma expressão com que na verdade ele queria significar o contrário, mas que assim foi justamente interpretada), a verdade é que sempre se proclamou de esquerda e fez disso seu bilhete de identidade.

Para Soares, a política era para ser empacotada de todas as formas e feitios, com todos os rótulos e embalagens. Apesar dos indeléveis ressentimentos que os embates do PREC haviam deixado, sabia que nunca seria presidente da República sem o voto dos comunistas, e na hora decisiva não o repudiou. Chegou mesmo a juntar-se na mesma Aula Magna da Universidade de Lisboa, em tempos de contestação à troika, ao PCP e ao Bloco de Esquerda – e nessa medida pode ser considerado também o avô da «geringonça», uma das escassas fórmulas políticas que não chegou a ensaiar enquanto governante.

Para exercer o múnus político, que considerava arte suprema e que sempre colocou no posto de comando, Soares não recorreu a nenhum princípio doutrinário pré-estabelecido (apesar das muitas leituras que fez ou disse ter feito), mas, acima de tudo, à sua célebre intuição. Era essa intuição que lhe permitia vislumbrar antes dos demais. Soube, por exemplo, fundar o PS no tempo certo (apesar da sua debilidade organizativa), e assim pôde, decorrido um ano, apresentar-se aos militares de Abril à frente de um partido, com um estatuto que nunca teria caso dirigisse uma mera associação. Percebeu também, bastante cedo, que em 1975 teria de entrar em rutura com o PCP e a tropa revolucionária, e foi esse avisado distanciamento que lhe permitiu encabeçar a resistência contra a radicalização do novo regime e assegurar-lhe as suas duas retumbantes vitórias eleitorais desse ano, para a Assembleia Constituinte, e do seguinte, para a Assembleia da República. Quando toda a gente no seu partido se mostrava incrédula, avisou que Eanes conspirava para destruir o PS, e o futuro deu-lhe razão, com o lançamento de um partido presidencial que impôs aos socialistas a sua maior derrota e quase aniquilou a candidatura soarista a Belém. Enquanto presidente da República, rejeitou uma fórmula governativa de geringonça avant la lettre, indispondo mais uma vez o PS contra si mesmo, para assegurar as eleições que deram a maioria absoluta a Cavaco e ao PSD.

No meio de toda a teimosia e irascibilidade com que exerceu cargos e funções, prevaleceu a sua bonomia, o seu otimismo, a sua tolerância e a sua magnanimidade.

Pai fundador, avô seja do que for, amado ou odiado (mais amado do que odiado), deem as voltas que derem, é como se nos tivesse desaparecido um membro da família.

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